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Desvios de Eros





Pablo Picasso (1954)










“Cada civilização viu o corpo
de uma maneira diferente,
porque cada um tinha uma
 ideia diferente do mundo”

Octávio Paz








          O erotismo gravado na literatura da antiguidade vive até os dias de hoje, manifestando-se pelo que determina o meio social concebendo, de forma predominante, o corpo. Mesmo nos períodos de forte repressão, como a chamada Idade Média europeia, conforme relatos da história, ter sido de predomínio da igreja católica, houve significativa manifestação do erotismo. Como mostram as cantigas de escárnio e maldizer portuguesas são alguns testemunhos de transgressão do moralismo dominante naquele período.
           Atualmente, o acesso a filmes, revistas, livros, utensílios e serviços sexuais é tão simples, mediatizado pelo dinheiro, normalizado pela psicologia do marketing, manipulada pela indústria da estética, do consumo de roupas, produtos e acessórios da moda.
          “Deu-se veneno para Eros beber; isso não o matou, mas transformou em vício”, disse Nietzsche. Apesar de suas diferentes e múltiplas conotações através da história, o erotismo na literatura ocidental parece oscilar sempre entre o desejo, que se sobrepõe ao prazer, e a transgressão, que substitui a plenitude. O grande ausente é o corpo, que, desencarnado pelo cristianismo, constitui um dos mais inquietantes desafios para a linguagem. Ele tem o dogma central da encarnação humana da divindade, um pensamento, digamos, contraditório, que produziu uma visão de mundo tão discriminatória do corpo. Essa forma de pensamento não consta, porém, dos Evangelhos e não é obra de Cristo, mas de zelosos neoconversos, que a formularam dentro de seus próprios contextos. Podemos citar o caso de São Paulo, pois suas ideias constituíram a base da ortodoxia. Por isso, é o caráter de religião proselitista, em suas relações com o poder temporal, e não as doutrinas estritamente religiosas que explicam melhor essa repressão. Mas, por outro lado, o corpo estará sempre tentando ressurgir no foco das grandes heresias, no misticismo, nas ciências herméticas, ocultas e na feitiçaria.
           A busca deste corpo perdido marca e sinaliza a literatura erótica mais do que qualquer outra coisa: conforme o ensaio que publicamos no blog.
      A sociedade burguesa segue a tradição das campanhas institucionais da higiene na tentativa de preservar a instituição familiar em parceria com a medicina. E dentro da ordem do dia o que não pode ser assimilado pelo povo é transformado em patologia, a exemplo da cultura do medo difundida pela aids, entre outras patologias transmissíveis pelo sexo. Dessa forma, à época da falsa moral ocorreu também a proliferação das uniões de pessoas do mesmo sexo, quebrando o conceito tradicional de família. É a conquista do terceiro sexo, rompendo as correntes do fundamentalismo religioso, dos dogmas e maniqueísmo, desmoronando a esfinge aparente de todos os mitos, ritos de passagem das instituições, confusas, contraditórias, hipócritas, impositivas e violentas em suas essências, na concepção da palavra.
     Paralelamente, Octávio Paz nos diz: “A moralização do ouro ou do dinheiro – que são o duplo simbólico do excremento – e sua transmutação em signo é paralela à expulsão das palavras (sujas) da linguagem e a invenção e popularização do reservado. O banco e o W.C. são expressões típicas do capitalismo.”
        Assim, a história do corpo, neste começo de século, é a sustentação do mito de Adônis, do hedonismo e da vaidade. Em nenhuma outra época ou civilização, o impulso erótico traduziu-se tão amplamente em princípio de subversão. Sua emergência como discurso político poderia indicar uma nova fuga na direção do espírito, há, porém, um fator novo nas recentes manifestações: o desejo não é mais projetado para o futuro, mas pretende  tornar-se atuante aqui e agora. Uma consequência de profundo descrédito em relação a prometidos paraísos terrestres, sempre colocados como metas longínquas. O messianismo revolucionário, como seu predecessor religioso, perdeu terreno, porque seus mitos não resistiram ao confronto com a realidade. A ideia de utopia também está ultrapassada, uma vez que, nesta época ameaçada de destruição total, nem se pode saber ao certo se o futuro existirá. Sendo o presente reinvestido como instância máxima de atuação, a existência de sacrifícios, sublimações e proibições, torna-se bem menos tolerável. “É proibido proibir”, é mais que um slogan, uma exigência que produz o efeito inverso.
          O presente mostra também o tempo do corpo e suas pulsões, que não pode, como a mente, assimilar uma abstrata noção de progresso. O retorno do corporal torna-se, pois, irrepreensível. Ao mesmo tempo, ao valorizar o instante em sua incandescência, essas manifestações também assumem um caráter poético, reivindicando o imaginário no poder pelo poder do imaginário.


Mitos versus Lucros


        Essas manifestações dos corpos em rebelião atingem o auge nos anos 60, o que também foram reassimiladas pelo sistema, sem que suas reivindicações fossem efetivamente satisfeitas. Mesmo sem atingir seus fins libertários, elas conseguiram, entretanto, ampliar o espectro das liberdades no campo sexual e certamente deixaram, nas mentalidades, marcas cujos efeitos não podem ser integralmente avaliados, porque a perspectiva ainda é muito próxima. Como reação, foi incentivada uma nova onda de conservadorismo e a liberação sexual, que tanto fora reivindicada, viu-se congelada num mito. Os fins são ideológicos, mas também comerciais e o boom da pornografia, transformado em indústria de massa, insere-se nesse contexto.
         Tendo em vista que tudo é rentabilizado, torna-se muito difícil, a partir de critérios meramente estéticos, distinguir o que é produção pornográfica (ligada ao aspecto venal, por definição) e produção erótica. E se a primeira está fortemente impregnada pela ideologia conservadora, a segunda também dela não escapa. Ambas podem servir de veículo para reforçá-la. Talvez a distinção se faça agora mais em termos de cultura de massa e cultura de elite e, dada a pobreza das representações da pornografia, ela bem que poderia ser definida como “o sexo sem qualidades”. As imagens reiteradas nos textos, e sobretudo nos meios audiovisuais, instalam a monotonia, mas nem por isso perdem eficácia na transmissão de mensagens, que inculcam e refletem os códigos sexuais dominantes. Porém, certamente não será pela censura que elas se tornarão artísticas ou libertadoras.
     Artísticas ou não, a evolução das representações da sexualidade, em sua constante dialética com a realidade, dependerá também do desenvolvimento dos próprios costumes sexuais e das relações entre os sexos. A tendência para uma igualdade crescente entre estes se delineia em vários países do Ocidente, ao ponto de se falar, como Elizabeth Badinter (no livro “Um é o Outro”), numa concretização do mito do Andrógino. Ela não se fará, contudo, pela absorção do feminino pelo masculino ou vice-versa, mas pela redistribuição, entre todos os seres, das qualidades e funções mantidas separadas pela educação e pelo sistema social. Rilke a antecipava nas seguintes palavras: “Os sexos estão mais próximos do que se pensa e a grande renovação do mundo consistirá talvez nisto – o homem e a mulher, liberados de todo falso sentimento, de toda aversão, não se procurarão mais como contrários, mas como semelhantes que se unirão enquanto seres humanos”.
     “Esse quadro idílico certamente não é para amanhã. O que é mais observável hoje é um recrudescimento das tendências narcísicas, uma baixa da tensão erótica quanto mais se fala do sexo e um Eros mais centrado nos desejos do Eu do que no prazer partilhado. Talvez porque esta sociedade não pode funcionar se os indivíduos não se transformarem em máquinas desejantes. O bom cidadão consome de tudo – mercadoria ou sexo. A igualdade proposta interessa à humanidade, não ao sistema, que detém o controle das imagens e as impõe. A representação erótica na arte tanto pode se conformar como resistir e se rebelar contra elas”. – diz Maria Carneiro da Cunha*




Referências Bibliográficas



CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito, antropologia, organizado por Betty Sue Flowers, tradução de Carlos Felipe Moisés, editora Palas Athena, 26ª edição, 250 páginas, 2008;
CUNHA, Maria Carneiro da. Os Espelhos de Eros, ensaio, jornal Leia, ano IX, Nº 101, março de 1987, página 34, editora Joruês, São Paulo;
BADINTER, Elizabeth. Um é o Outro. Psicologia, 4ª edição, 312 páginas, editora Nova Fronteira, 1986.






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