Capa do LP do grupo Língua de Trapo
Aparentes
trivialidades podem oferecer pistas
para
a compreensão das mentalidades
ou
premissas das pessoas
Numa tarde
seca, quente e abafada, passeava a pé por antigo bairro da cidade. Na esquina
de uma rua estreita, observei um bar. Em uma de suas paredes, que constituem
tentação tão grande para os pichadores, alguém tinha rabiscado três palavras em
letras grandes: “Centro de Fofocas.” A primeira coisa que me veio à cabeça foi
tentar imaginar quem poderia ter escrito a mensagem – que provavelmente não era
uma descrição sociológica neutra, mas a reação irada de uma vítima anônima,
alguém que acreditava ter sido alvo de mexericos recentes. A segunda coisa foi
refletir sobre a fofoca como fenômeno social, sobre sua geografia, sua
sociologia e sua história.
Quando
falo em “geografia” da fofoca, não me refiro à sua distribuição pelo planeta,
pois é pouco provável que exista algum lugar no mundo em que a fofoca não seja
praticada, desfrutada e, é claro, temida. Existe, porém, uma interessante
microgeografia da fofoca. Ela inclui instituições políticas importantes. Cortes
reais, como a Versalhes de Luís XIV, foram grandes centros de mexerico em sua
época.
Hoje, essa função foi assumida por
assembleias como os parlamentos ou as câmaras de deputados, de modo que os
jornalistas costumam, muitas vezes, frequentar os chamados “corredores do
poder”, tornando-se os primeiros a divulgar para um público maior o escândalo
político mais recente (com isso, transformando a fofoca, que é por definição
exclusiva, em “rumor”, o que faz com que ela se espalhe de maneira muito mais
ampla).
Em
Menor Escala
Mas os centros de fofoca são mais
visíveis quando operam em escala menor como é o caso do bar em Presidente
Prudente. Na França, o que vem à mente são os cafés; na Inglaterra, os pubs; na
Itália, as “piazzas” e, nas pequenas
cidades brasileiras tradicionais, como a Cruz Alta tão vividamente descrita por
Érico Veríssimo, a farmácia local. A esses centros de sociabilidade
predominantemente masculina podem ser acrescentados alguns pontos de encontro
tradicionais de mulheres, tal como a porta de casa ou um telhado plano ou, ainda,
um poço sufocante do bairro, pelo menos nos tempos anteriores à instalação de
água corrente. Essa distinção entre os centros de fofoca masculinos e femininos
nos conduz à sociologia dessa prática. A fofoca é, há muito tempo, associada às
mulheres – tanto assim que o pregador francês do século XIII Jacques de Vitry
chegou a identificar um demônio específico, Tutivillus, cuja ocupação principal
consistia em incentivar as mulheres a fofocar. Várias feministas reagiram a
essa calúnia contra seu gênero, dizendo que a vinculação das mulheres à fofoca
não passa de preconceito masculino.
Quando homens se reúnem em grupo
para conversar, diz essa reação, eles costumam descrever o que fazem com uma
“conversa” ou “discussão” e afirmar que os temas de que falam são questões
públicas, tais como política ou esportes. Por outro lado, quando os homens
ouvem mulheres conversando entre si, eles chamam de “fofoca” o que elas fazem,
presumindo que os temas de sua conversa sejam fatos da esfera privada.
A análise social da fofoca não se
restringe à questão do gênero de quem a faz. O sociólogo Norbert Elias publicou
um estudo intitulado “Os Estabelecidos e
os Outsiders”, em que trata de um vilarejo inglês e um novo conjunto
habitacional construído ao lado dele. Nesse livro, Elias discutiu a
contribuição da fofoca à construção das duas comunidades, observando tanto o cimentar
das relações sociais pela “fofoca-elogio” quanto à exclusão dos outsiders pela
fofoca/atribuição de culpa” (para muitas pessoas, a fofoca ou mexerico é por
definição algo mal-intencionado, mas Elias encarou o assunto sob uma ótica mais
ampla.)
De maneira semelhante, o antropólogo
Max Gluckman, meio século atrás, descreveu a função da fofoca como sendo um
meio de excluir os outsiders e, com isso, encorajar a formação de laços no
interior de um grupo específico. Essa
visão da fofoca como um mecanismo de fortalecimento de laços foi criticada por
alguns outros antropólogos. Um deles, baseado em seu trabalho de campo no
Caribe, descreveu a fofoca não como instrumental, mas sim como um fim em si
mesmo, seja tanto uma performance ou uma arte. Outros analistas focalizam não a
“comunidade” (que vêem como mito), mas redes de indivíduos que agem em prol de
seus interesses próprios e utilizam a fofoca e a gestão de informações ou para
causar boa impressão ou para competir com seus rivais de outras maneiras.
A
Importância do Trivial
Em suma, a fofoca possui geografia e
sociologia próprias. Será que também possui uma história? Para os historiadores
tradicionais, a fofoca, como o “mito”, é simplesmente informação inexata, a ser
detectada e então descartada.
Para esses historiadores, os
mexericos difundidos por pessoas importantes e os que dizem respeito a elas não
merecem crédito, enquanto as fofocas do resto de nós são indignas da atenção
dos estudiosos. Por esses motivos, até alguns anos atrás, os historiadores
desprezavam o assunto. Nos últimos anos, alguns deles descobriram a fofoca do
mesmo modo que descobriram a importância de “tomar nota de trivialidades.” Em
outras palavras, os historiadores hoje têm consciência de que aparentes
trivialidades podem oferecer pistas para a compreensão das mentalidades ou
premissas das pessoas e, desse modo, oferecer maneiras de chegar a uma compreensão
mais profunda de uma cultura passada.
Como já foi demonstrado por
antropólogos em diversos casos, especialmente, mas não exclusivamente, casos
tirados das culturas mediterrâneas ou latinas, a fofoca é fundamental na
construção, manutenção e destruição da honra ou reputação de uma família ou um
indivíduo. Em outras palavras, essa atividade privada faz uma contribuição para
a esfera pública.
Má
Fama
Uma frase que reaparece a todo
momento nos registros judiciais europeus dos séculos XVI e XVII diz respeito a
“reputação pública” (em francês , o bruit
commun, em italiano a “fama comune”,
e, em espanhol, a “pública voz”,
etc.) Normalmente, o fato de um indivíduo ter má reputação não bastava para que
fosse condenado por homicídio, heresia, blasfêmia ou bruxaria, mas, com
frequência, era suficiente para motivar uma investigação pelas autoridades
religiosas ou políticas, às vezes, com consequências fatais para o acusado.
Perguntava-se aos vizinhos do
suspeito ou suspeita o que sabiam a seu respeito. Era comum que a resposta
começasse com “eu cuido de minha própria vida”, mas, depois de proferida essa
frase ritual, as pessoas demonstravam possuir conhecimento detalhado sobre a
vida “particular” do acusado. Naturalmente, os investigadores tinham
consciência do problema dos fuxicos mal-intencionados (a aquisição, por
exemplo, costumava pedir aos suspeitos, no início de seus interrogatórios que
identificassem seus inimigos), mas isso não os impedia de levar adiante suas
investigações.
De modo aparente, as autoridades se
pautavam pela regra segundo a qual, se alguns poucos indivíduos fazem uma
acusação, ela pode ser calúnia divulgada de má-fé, mas, se um número suficiente
de pessoas participa da divulgação de uma história, esta se torna “comum” ou
“pública”, justificando o trabalho e o custo da investigação. Até hoje polícia,
detetives e jornalistas costumam conversar com vizinhos como parte normal de
suas investigações de casos de homicídio, por exemplo, embora, nunca era como a
nossa, quando tantas pessoas vivem em grandes cidades, é pouco provável que a
maioria das pessoas saiba tanto sobre as vidas privadas de seus vizinhos quanto
era o caso em séculos anteriores. Talvez, isso não sirva de consolo a quem fez
a pichação em Presidente Prudente, mas o bar dessa cidade, como centro de
fofocas, provavelmente é uma instituição em processo de declínio.
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