A cozinha hoje, é um anexo da sala
e não mais o
esconderijo dos escravos
Vivemos em pleno universo das
transformações na moda, nos costumes e consumo. Começaram a mudar com os novos
“sujeitos” da culinária (homens principalmente) e a transformação da cozinha em
parte nobre da casa. Uma evolução cultural ou nova sedução pelo paladar? Pela
falta de emprego e outros problemas sociais que enfrentamos, surge uma figura
polêmica no universo machista brasileiro: o homem doméstico. Qual seria a
reação do personagem Leonardo, interpretado por Jackson Antunes, na novela A
Favorita de João Emanuel Carneiro, se perdesse o emprego na fábrica. Um tipo
grotesco, machista ao extremo e reacionário, um pai omisso e um marido
execrável, que trata a mulher Catarina, como empregada e objeto.
Como muitos, a sua mulher teria que
assumir os compromissos com a casa e os filhos. Você sente uma mistura de
complexo de inferioridade com doses de frio, que lembra medo e insegurança. Um
homem que hiberna, feito urso polar. Você treme nas bases!
O frio faz evocar nomes como massas,
assados, vinhos e outras guloseimas, ou iguarias. Recentemente, o destaque que
vem ganhando sobre a ajuda do homem nas tarefas da cozinha, mudou o conceito tradicional
no reino do forno e fogão. Até algum tempo atrás a mandatária deste reinado era
incontestavelmente a mulher. O cetro da rainha do lar não era mesmo o rolo de
macarrão? Era ela a destinatária dos livros e manuais de cozinha, seguindo as
estratégias de vendas das editoras. Nos últimos anos, contudo, parece que a
cozinha, seus sonantes utensílios, vêm mudando de mãos.
“Antigamente”, um termo que não
gosto de falar porque lembra coisa antiga, nas festas, as mulheres trocavam
receitas. Agora, são os homens que estão interessados em culinária, muito mais
do que as mulheres. Se os homens passam a público da literatura culinária são
eles, também, que mais aparecem na própria mídia como cozinheiros, mudando
inclusive, novos “sujeitos” da culinária que são, o tom adotado nas receitas: o tom impessoal com
verbos no infinitivo (característica que deliberadamente omite o ou a agente da
cozinha) vem sendo substituído pelo charme da primeira pessoa do singular, no
caso do colunista Silvio Lancellotti, autor do Livro dos Molhos.
A presença dos homens nas colunas de
jornais, revistas e na televisão, não apenas comentando restaurantes, mas
sugerindo cardápios e apreciando ingredientes, demonstra que a cozinha não
pertence mais à área dos fundos da vida contemporânea. De fato, os projetos de
apartamentos nos grandes centros estão privilegiando a cozinha como espaço
altamente tecnologizado e eficiente. A cozinha hoje, é um anexo da sala e não
mais o esconderijo dos escravos. A área destinada a ela é pequena, mas seu lugar
é o coração da casa.
Embora não soe como novidade que os
homens andem trajando aventais de matelassé
e se havendo com escumadeiras e espremedores de alho, na verdade eles dominam o
espaço da culinária há séculos. No reinado de Luis XV se distinguia “a cozinha
da cozinheira”, feita de conhecimentos práticos e de tradição familiar, e a
cozinha do cozinheiro, com ênfase na invenção e na reflexão”. O ato generoso de
cozinhar produz a felicidade não só de comensais, mas, também, de cozinheiros. Como
mostrar os dotes culinários demonstra um ato pequeno de arrependimento e
necessidade, de nos redimir, perante os séculos de violência e desvalorização
da mulher. Não pode ser outro, senão, um sedativo para a complexa, hipócrita e
infeliz sociedade dos machos.
(Esta
crônica pertence ao livro “Novas de Macho na Cozinha e Outros Ingredientes II”,
de Rubens Shirassu Júnior, Páginas 38, 39 e 40, Editora Clube de Autores, 242
páginas, São Paulo, 2012.)
Mais
informações, acesse o link do livro na página da editora:
Comentários
Postar um comentário