“É
sempre bom lembrar / Que um copo vazio / Está cheio de ar / É sempre bom
lembrar / Que o ar sombrio de um rosto / está cheio de um ar vazio / vazio
daquilo que no ar do
copo / Ocupa um lugar / É sempre bom
lembrar / Guardar de cor / Que o ar / vazio de um rosto sombrio / Está cheio de
dor / É sempre bom lembrar / Que um copo vazio / Está cheio de ar / Que o ar no
copo / Ocupa o lugar do vinho / Que o vinho busca ocupar lugar / Da dor / Que a
dor ocupa a metade / Da verdade / A verdadeira natureza interior / Uma metade
cheia / Uma metade vazia / Uma metade tristeza / uma metade alegria / A magia
da verdade inteira / Todo poderoso amor / É sempre bom lembrar / Que um copo
vazio / Está cheio de ar.”
(Copo Vazio, Gilberto Gil)
Ele sempre sonha com um túnel
vertical, uma espécie de chaminé, por onde se aprofunda, lentamente, planando,
numa espécie de levitação inversa. O túnel é todo de pedra negra, mas os
diamantes nele incrustados iluminam seu caminho com cintilações, à medida que
desce flutuando. Está vendo os diamantes, pensa, no sonho. Isso o emociona
tanto ver as gralhas circulando as radiantes pedras preciosas, que acorda.
Ao despertar sempre fica
imediatamente alerta, creio mesmo que esse era o momento do dia em que ficava
mais lúcido, mais perspicaz – e ia para a janela. Contempla o horizonte
dividido em dois pedaços. Embaixo, um cinza metálico rígido e em cima nuvens
negras movimentando-se para a esquerda, numa massa compacta, lentamente, como
se estivessem circulando o planeta inteiro. Via, no céu, as gralhas com as
quais sonhara. Ou seriam urubus?
Desde o amanhecer, um vento seco e gelado,
semelhante ao de julho, varre a cidade inteira. A certeza que tem é grande, o
vento traz um volume de areia que terminará por cobrir a cidade, se o vento
prosseguir violento e trazendo tantos grãos de areia. Passa a mão pela janela
de hora em hora e recolhe a palma cheia. Já amontoou um balde dentro do quarto,
desde o começo do mês. Está em vigília, percebe que o deserto está avançando
perigosamente, diz que enviará abaixo-assinados aos vereadores, aos secretários
e ao Prefeito para a situação de emergência. Ele sabe que não é fácil fazer
esta convocação, estão todos há algumas quadras daqui, nos cinemas, vários
efeitos em 3D, mas nenhum é especial. Estão programadas diversas festas nas
danceterias. Porque hoje é uma segunda-feira comum.
Olha para
a parede, enquanto imagina aparecer, finalmente, o rosto dela pálido, como uma
folha seca de outono. E ao fechar os olhos: - Você não é mais o mesmo. As
gralhas, com cara de urubus voando, exibindo-se para mim. Elas dizem que o amor
não existe, uma criação do Homem, que só há o orgasmo, as relações líquidas e
passageiras, cuja vitalidade é uma coisa parecida com defecar, por exemplo,
algo que te alivia e depois você se limpa, com uma toalha, ou com água, em
seguida vai tratar da vida – comprar uma roupa, ou uma casa ou uma joia, ou
fazer ginástica.
Elas dizem
que somos um monte de macacos de auditório, condicionados, uma série de
produtos descartáveis, como gilete velhas, ou papel higiênico, absorvente,
latas de sopas vazias, restos de ensopado da panela ou comida velha do verão. Talvez,
tenham razão. Seu coração, seu sangue não podem captar a sutileza daquele ser. Ele
é um condenado ao inferno astral e seus ossos doem e sua carne está tão
castigada que, quando entra num lugar, não fala e seu nariz emite uma água sem
cheiro, incolor, como gelo derretido, e não consegue pegar um papel com a mão.
Coisas de que um homem necessita que
o faz sentir-se protegido. E isto, a sensação de vácuo. Pensa a todo instante
que vai mergulhar no escuro, e não terá onde se agarrar. Parece cambalear como
bêbado e se apavora com a ideia de que estão vendo-o neste estado. Talvez, até
seja uma labirintite. Mas não está bêbado, faz uma semana que não toma umas
cervejas e tem vontade de ir ao bar, agora apanhar aquele copo gelado entre as
mãos, sentir o vidro suado nada mais. É o contato e a identificação com o copo
frio, quase transbordando, com o vidro esbranquiçado que vai fazer bem. O gelo
toca-o, penetra-o. Permanece, por instantes. Ele se sente vivo, porque o gelo o
transforma, o desagrada, a dor latejante e profunda nas artérias e nos nervos
da mão. Este copo o faz vivo. Ainda tem reações. Muitas vezes, chega a duvidar
de si.
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