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O Vento Assovia na Chuva Tímida











A presença da água parecia reportar ao idílio
do bairro de antigamente, quase sem casas...












            Dias seguidos de seca. Tristeza entre as plantas do jardim, estorricadas pela seca, queimadas pelo sol de outono. As folhas das samambaias espalmam-se sequiosas para receber a água que sobre elas se despeja, duas vezes por semana. No xaxim, formam-se regos por onde escorrem miniaturas de riachos. Desesperados no aspirar fundo, os cachorros magros, na rua, encostam o focinho nas guias da sarjeta. O sol bate e se firma pondo as línguas de sede para fora, andam sem direção na esperança de um fio de água das calçadas.
            E assim foi por dias e dias seguidos. Após um tempo de estio, com baforadas de ar quente, seco e abafado, cai uma cortina de chuva tímida. Já repararam que é quase sempre pelas 18 horas que o tempo vira? O que faz a gente dar um imenso bocejo, uma mistura de preguiça com dor nas juntas do corpo.
            Quando cheguei à janela, vi a chuva tímida no horizonte cinza, cercada de concreto. Mas, a presença da água parecia reportar ao idílio do bairro de antigamente, quase sem casas, com uma em cada esquina, descendo quatro quarteirões, um frondoso pomar dividido entre jabuticabeiras, mangueiras, pés-de-cana e bambuzais, com algum índio humilde, porque havia água fresca, limpa e doce de riacho antigo, como uma sensação misteriosa. Foi um acontecimento sagrado sem explicação que irmana o homem aos elementos da natureza com o assovio do vento na chuva tímida...
            A chuva tímida demorou-se pouco. Distribuiu poucos lampejos de trovões e, satisfeita ao ver que tudo estava repleto de folhas e galhos secos, recolheu-se atrás das nuvens. E o vento continuou a assoviar pelos telhados e prédios, ligeiro e persistente, prometendo ficar pela noite adentro. O vento que assovia traz um sereno alívio no barulho das folhas batendo na janela. O ar está lavado, apesar do chão ser de asfalto, livre de fuligem e outras sujeiras que habitualmente poluem e que não sentimos porque já estamos acostumados a respirá-las. E, como uma revelação de um mistério, diante da qual nos sentimos possuídos por uma impressão estranha, quase angustiosa, de alguma coisa que ficou clandestina no passado.




(Esta crônica foi publicada no Item “Prosadores Contemporâneos” do portal Blocosonline de Leila Míccolis e Urhacy Faustino, de Maricá, no Rio de Janeiro. Encontra-se também nas páginas 173 e 174, do livro “Novas de Macho na Cozinha e Outros Ingredientes II, de Rubens Shirassu Júnior, 244 páginas, Editora Clube de Autores, São Paulo, 2012.)


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