Auto-Retrato de Ismael Nery
O
mundo tinha valores sólidos que custavam a mudar
O
sentimento de solidão era menor encerrado atrás de quatro paredes, portas
trancadas e corredores vazios. Os ruídos exteriores eram normais, mas traziam
medo. As pessoas não podiam se olhar, cara a cara, enfrentar-se sem receios, a
língua seca e o coração disparado.
Passa os olhos pelo jornal virtual e
as notícias sintetizadas da internet, fica estarrecido com as estatísticas de
mortos. Todos os dias, com um prazer necrófilo, examina as causas de
familiares, amigos e colegas de profissão. Morrer do coração. Infartos,
derrames, todo tipo de complicações cardiológicas aparecem na causa mortis. Ou
seriam mentiras? Dissimulações. E por que gente com vinte anos ou menos ainda,
tem as artérias do coração entupidas? Nem dá para acreditar. E de que adianta
não confiar nas estatísticas?
Revê um postal agora e percebe a
atuação do fotógrafo de formatura: era firme a sua mão e agudo o seu poder de
observação. O homem entusiasmado ajeitou várias vezes o rosto de uma jovem e
esbelta formanda, a sua mãe. O fotógrafo empurra o queixo para cima, numa
dessas poses de porta de circo ou vitrine de poster artístico, o termo daquela
época. O olhar doce e sereno da genitora nunca mais foi retratado deste modo.
Era ela delicada e cordial, porém não impulsiva. Ao menos, não era nos
primeiros anos, demonstrou apenas na fase terminal.
Será que ele contribuiu para transformá-la
de tal modo? Ou foram as situações à sua volta? A mãe via o mundo de um modo
diferente do seu: gostava de tranquilidade, do sossego, da serenidade de
espírito, preocupava-se com a mente em harmonia, esquecendo-se da estabilidade
financeira, do acúmulo de joias, adornos, entre outros pertences materiais. O
mundo tinha valores sólidos que custavam a mudar. Podia-se aceitá-los, seguros
que durariam ao menos uma vida.
E quando mudavam, existia toda uma
preparação, as pessoas eram condicionadas, nada explodia subitamente
assustando. Valores simples, às vezes. Algo, assim, como as festas populares
onde as pessoas costumavam usar alguma coisa feita de couro novo, pano de
algodão chita, morim e de tergal. Ou queimar palha benta para a chuva acabar.
Costumes simples, cerimônias, rituais, hábitos, coisas que permaneceram por
séculos, passadas de avô, a pai, a filho, a neto e a bisneto. Gestos familiares
espontâneos, falas autênticas, comidas, chás fitoterápicos, conhecimentos
empíricos, mitos, causos e crendices. Permaneciam. Deixavam uma impressão de solidez,
favoreciam a serenidade, o encanto que alimentava a magia e a esperança, pode
até ser ingênua ilusão, mas eram certezas.
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