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Retratos da Era do Papel











Andanças e relatos de um contador de histórias











DO JEITO QUE VI
Montezuma Cruz
Relatos Jornalísticos
Editora Anexo Soluções Integradas
Lima & Santiago Comércio
e Serviços Gráficos Ltda.
144 Páginas
2014
Brasília – Distrito Federal











            Os grandes jornalistas caracterizam-se por um amor incondicional pelo papel. Um deles, Montezuma Cruz, como um legítimo homem da Era do Papel, que a vida toda se cercou de publicações impressas, evoca cenas precisas e preciosas dos dias que as redações tinham laudas, “o frenesi romântico e barulhento das máquinas de escrever, e em que os jornalistas faziam dos bares uma extensão dos jornais e das revistas em que trabalhavam.” - conforme declaração do jornalista Paulo Nogueira.
            Os relatos de Do Jeito que Vi, de Montezuma Cruz, transcorrem no período que antecede ao golpe militar de 1964 e mostram, sob a ótica do jovem e idealista, a realidade social e política do Brasil desses tumultuados anos sob a ditadura militar É um livro instigante que nos leva à constante reflexão em razão dos contrastes que expõe. De um lado, a população assiste ao ciclo do café da Média Sorocabana e do algodão no Pontal do Paranapanema junto com a exploração dos fazendeiros. Em outras páginas, a leitura carrega sangue, covardia e violência, o que traz o sentimento de indignação quanto à composição de egoísmo que forma a face grotesca dos coronéis que impõem o poder através da barbárie e da cultura do medo, que ainda infesta as matas, as florestas e as terras deste imenso e paradoxal País. Nas entrelinhas dos textos, verificam-se as necessidades básicas dos não privilegiados, o que se resume na insuficiência, na incapacidade da ação humana contra a injustiça de uma sociedade desestruturada, hipócrita e doente, que privilegia o capital e discrimina a pobreza e as minorias étnicas e sociais.
            O livro Do Jeito que Vi, de Montezuma Cruz, é um documento onde conta as histórias da imprensa de Presidente Prudente (dos extintos jornais A Região, Correio da Sorocabana e a Voz do Povo) e dos Estados de Mato Grosso do Sul, Paraná, Rondônia, Amazonas e São Luís do Maranhão, de forma fluente, bem recheada de informações minuciosas e estatísticas. Da própria verve de um autêntico e talentoso contador de histórias. Um verdadeiro resgate das tradições, hábitos, costumes e jargões da imprensa do século passado. O jornalismo impresso, fora dos grandes eixos, como São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba e Brasília, exigia do repórter um grande empenho, dedicação, determinação e sorte, em razão dos parcos recursos que dispunham para produzir uma matéria: um bloco de notas, uma caneta esferográfica, um gravador de fita-cassete, sendo movidos por quatro pilhas. Apesar da demora nas ligações telefônicas, além dos típicos entraves, a exemplo da falta de asfalto e luz elétrica nas ruas e avenidas dos bairros periféricos.
            A perspectiva do índio face ao colonizador, o homem amazônico diante de sua história – esquecida ou mistificada pela cultura oficial – despontam fortes nos relatos de Montezuma Cruz. Com a dramaticidade entrecortada por momentos de sátira, de riso, até de deboche. Mas, também, com a força da pesquisa documental e histórica com base para desvendar o passado e compreender o presente. Passando ao largo das versões oficiais e procurando algumas das versões desprezadas pelos manuais, Cruz compõe um quadro realista, de poucas perspectivas e terrível dos Estados da Amazônia, passando por Rondônia, Paraná, Mato Grosso do Sul, Brasília e São Luís do Maranhão.
            Lançando mão de pesquisas, depoimentos, estatísticas, transmitindo segurança e credibilidade, expressões mais completas do passado e do presente destas regiões, Cruz não poupa ninguém de sua exposição arguta. Um painel crítico que se estende à cultura, ao folclore, ao artesanato e à música popular, passando pelas tradições, hábitos e costumes, e a fitoterapia das ervas medicinais cultivada pelos xamãs dos povos indígenas, a culinária típica e a vida amazonense. Para que não reste dúvida, Montezuma Cruz faz do jornalismo investigativo, uma arma de cidadania, de cultura e de política bastante aguda, dirigida contra opressores e elites oportunistas do País. Contra a ignorância planificada pelos altos escalões, que inclui as autoridades políticas, judiciárias e religiosas, além de fazendeiros como de banqueiros, sua comunicação de combate.
            Mais claro e objetivo do que os livros de Márcio Souza, autor de Mad Maria (1980), sobre a epopeia da construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, uma das obrigações decorrentes da assinatura do Tratado de Petrópolis, Cruz amplia e retifica certas posições defendidas no começo do século 20 por Euclides da Cunha, não se extasiando pelo carnavalesco daquele conjunto hidrobotânico e mantém-se alerta o suficiente para declarar: se o homem amazônico - branco ou índio - descaracterizou-se e caiu em desgraça, não é porque a selva o engoliu. Mais forte que a selva em torno foi a selvageria de um sistema econômico adventício, que não titubeou em destruir um sistema de valores elaborado ao longo dos séculos e que acabou por impor referências culturais inteiramente estranhas ao meio. Em resumo, a Amazônia é um dos recantos do mundo onde o capitalismo deita e rola.
            Do Jeito que Vi torna-se hoje uma obra de referência para os estudantes de comunicação social, história, geografia e sociologia, como instrumento de registro e resgate da memória, para que pesquisadores tenham mais subsídios sobre as raízes culturais e o processo das formações sociais e econômicas das cidades focalizadas no livro, de Presidente Prudente e, também, a região oeste do Estado de São Paulo.










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