Uma
literatura que não usa perfume, nem traje de gala. Em José Louzeiro, as coisas
aparecem com o odor que têm em nossa realidade social, envoltas por farrapos de
favelados ou cidadãos de segunda classe, por disfarces, ternos com cheiro de
delegacia ou, ainda, por uniformes a serviço de objetivos escusos. Neste autor,
que ousa levar a reportagem às últimas consequências, a busca da objetividade e
a tentativa de resgatar do esquecimento o drama humano causador e decorrente da
violência deslocam para um segundo plano as preocupações de ordem formal. As
frases esmeradas ou as expressões exatas cedem lugar para o “jeito de falar” do
povo, para o palavrão cru, sem que isso deixe de prender o leitor da primeira à
última linha de qualquer de suas obras.
Livros
como Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia
ou Em Carne Viva, não são simples
retratos corajosos de um dos períodos mais tristes de nossa história. São dedos
pousados sobre uma de nossas principais feridas sociais: a violência. Sua
literatura incomoda os bem-postos e os bem-pensantes. Talvez por isso Aracelli, Meu Amor tenha sido apreendido
e a obra de Louzeiro ainda não tenha subido os degraus que separam o mundo da
Academia.
O
caminho para examinar a obra de Louzeiro não seja esse. Pelo menos depois que
escreveu Lúcio Flávio, o Passageiro da
Agonia, em 1975, abandonando o formalismo existente em Depois da Luta, o livro de contos de sua estréia. A partir dali,
utiliza outra forma: o discurso despojado, jornalístico que prende o leitor
muito mais pelo desenvolvimento da trama do que pela elaboração da linguagem.
Também mostra outro conteúdo, que se revela um filão inesgotável: a denúncia da
corrupção e da violência do sistema político-social, visto através de um dos
seus setores – o aparelho policial do Estado.
Essa
sua opção exigiu-lhe a coragem e a consciência do seu papel de escritor,
enquanto porta-voz da enorme maioria amordaçada do povo e depositário da
memória da fase mais negra da história desse país. Ressalta-se que tanto Lúcio Flávio quanto Aracelli foram escritos ainda sob o terror oficial, expresso e
sinistramente praticado à sombra do famigerado AI-5. Aracelli, Meu Amor, pasmem os mais novos, chegou a ser censurado e
apreendido, sob a cínica alegação de que tentava contra a moral e os bons
costumes.
Objetividade
Nos
textos selecionados, o critério principal foi o de escolher os títulos que
melhor e mais convincentemente retratassem a guerra não declarada a que vimos
nos referindo por ordem de publicação: Lúcio
Flávio, o Passageiro da Agonia, Aracelli, Meu Amor, Infância dos Mortos e Em
Carne Viva.
Em
todos eles, destaca-se o cuidado meticuloso, a pesquisa obcecada na busca da
verdade dos fatos, para só então o autor trabalhar sobre os personagens. Quem
se der ao trabalho de compulsar os autos dos processos dos crimes romanceados e
o noticiário da época, poderá facilmente constatar esta tarefa preliminar. Que
certamente, não ficou por aí: ampliou-se em entrevistas com informantes que não
apareceram no inquérito, seja por desinteresse suspeito das autoridades, seja
porque eles próprios desejassem se omitir, mas essas informações são muito bem
aproveitadas por José Louzeiro. Isso se torna evidente na minuciosa descrição
do suplício de Stuart Angel, militante
político assassinado por tortura pelo DOI-CODI da Guanabara, e que no livro Em Carne Viva é denominado Aécio.
Outro
aspecto a merecer ênfase seria a sua objetividade diante dos fatos. Nesses
livros não se encontra a dicotomia do bem e do mal, apresentando o marginal
sistematicamente como um anjinho, de bom coração e melhores princípios,
empurrado sem escolha para o crime, e o policial, por sua vez, não aparece
invariavelmente como arbitrário e corrupto. Apesar de ficar implícito que a
vida miserável e sem perspectiva dos grandes centros urbanos favorece e, muitas
vezes, impele mesmo o pobre para a delinquência.
Lúcio Flávio não
entra para o crime premido pela necessidade de sobrevivência, e o Leo, do Em Carne Viva, que assiste à morte de Aécio, é apresentado como uma figura lombrosiana* (que possui traços físicos
de criminosos, de acordo com as teorias de Cesare Lombroso - 1835/1909),
criminologista italiano), tendo no crime sua verdadeira vocação. Já em Aracelli, Zé Severino, Asdrúbal Cabral –
o Dudu, Homero Dias, assassinado pelas costas pelos seus próprios colegas
porque estava levando a sério a investigação – representam policiais honestos,
cumpridores de seus deveres. São exemplos suficientes para comprovar esta
isenção do autor.
Agora,
se a maioria dos policiais que aparecem nos seus livros são corruptos e
arbitrários, e os marginais ou criminosos não passam quase todos de uns
pobres-diabos, a culpa não é de Louzeiro, mas sim da realidade que ele
fielmente retrata. A propósito, ele mesmo escreve o seguinte trecho, que vem
logo depois da dedicatória de Infância
dos Mortos: “Os fatos que substanciam
esta narrativa foram tirados do nosso amargo cotidiano. O autor não teve a
preocupação de alinhá-los, cronologicamente, nem se absteve de descrever situações
brutais que mostram muito bem o grau de desumanização a que chegamos”.
Domínio
do diálogo
Mas
há muito mais ainda que se falar das qualidades desse escritor. Como, por
exemplo, o seu domínio do diálogo. O conhecimento que possui da linguagem dos
seus personagens – seja dos marginais, seja da polícia, com seus jargões
específicos, mas muitas vezes comuns -, certamente adquirido, depois de muita
pesquisa e observação, torna os diálogos absolutamente convincentes e
eletrizantes. Como se estivesse ouvindo uma gravação. Um dado a mais que prende
a atenção do leitor, amarrando-o à emoção e tensão crescentes de sua narrativa.
Aliás,
certamente esse seu domínio do diálogo que acabou levando-o para o cinema.
Enganam-se os que pensam ter sido ele roteirista apenas dos seus dois livros
transformados em filmes – Lúcio Flávio, o
Passageiro da Agonia e Pixote, a Lei
do Mais Fraco (baseado no livro Infância
dos Mortos), em apenas seis anos nessa atividade, Louzeiro já foi autor de
roteiro de doze filmes de longa metragem, entre os quais O Caso Cláudia, dirigido por Miguel Borges, Parceiros da Aventura, de José Medeiros e Os Amores da Pantera, de Jece Valadão.
Convincente
mesmo nas personagens de ficção
Voltando
aos textos comentados, devemos ressaltar que altamente convincentes são também
as personagens por ele criadas, que circulam pela trama com a mesma
autenticidade das figuras reais com quem convivem na narração. É o caso de Rita
Soares, de Aracelli, uma mulher do
povo, misto de curandeira e benfeitora, alma caridosa dedicada apenas a fazer o
bem e ajudar os humildes e necessitados. Figura que na realidade encontramos
frequentemente em qualquer comunidade pobre e marginalizada. Ou o seu oposto, o
amigo Velho, do Em Carne Viva,
símbolo do tira corrupto, sem nenhum escrúpulo, medíocre na carreira e na
personalidade, mas que passa bem graças aos achaques que vive estorquindo dos
criminosos em liberdade, aos quais muitas vezes finge proteger para poder
explorá-los mais e sem maiores riscos. Tipo obrigatório e facilmente localizável
em qualquer delegacia ou distrito policial.
Ainda
há críticos e intelectuais, de excessivo rigor, que não só questionam a
condição de escritor como condenam qualquer tentativa de jornalista se meter a
fazer literatura com os fatos do cotidiano. E José Louzeiro é jornalista, dos
bons. Além de roteirista de cinema, dos melhores.
Vejam
no que dão os exageros: esquecem-se eles que Ernest Hemingway ao escrever Por Quem os Sinos Dobram, nada mais fez
do que romancear seus textos de correspondente de guerra de um jornal
norte-americano, durante a Guerra Civil Espanhola. E, para ficar nas letras
nacionais, foi assim também que Euclides da Cunha criou Os Sertões depois de ter coberto a Guerra de Canudos para o jornal
O Estado de S. Paulo.
Não
que esteja querendo comparar Louzeiro ao escritor norte-americano ou ao nosso
Euclides da Cunha. Estou é explorando uma coincidência enquanto o primeiro escolheu
como tema a guerra entre os republicanos e os fascistas espanhóis, Euclides a
dos místicos de Antonio Conselheiro contra o nosso glorioso exército, Louzeiro
aborda a guerra permanente e cada vez mais desigual e cruel dos fracos e
oprimidos contra os poderosos e seus aliados armados, a polícia.
Uma
guerra disfarçada, mas implacável que já matou, só entre São Paulo e Rio de
Janeiro, milhares de brasileiros. Por curiosa e inexplicável coincidência,
tombando, quase que invariavelmente, só os pobres e marginais, criminosos e
inocentes.
Seu
único livro incluído na lista dos mais vendidos da grande imprensa foi Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia. E
aqui, outra coincidência, não menos curiosa e inexplicável: foi o seu primeiro
livro a abordar a guerra, que ele resolveu adotar como tema nos seguintes.
Por
que será? Existe realmente uma espécie de boicote, em virtude da fixação numa
temática que já caracterizou sua obra? Será por que o livro que veio a seguir, Aracelli, Meu Amor, denuncia uma
escabrosa e inacreditável conspiração dos poderosos em conluio com os
detentores eventuais do poder, visando, e conseguindo, deixar impunes os
autores de um crime bestial, praticado por diletos filhos do lado sempre
vitorioso desta guerra? Ou será ainda por que uma análise literária
considerando a trama demasiadamente linear, o foco narrativo, às vezes, beirando
perigosamente o óbvio, personagens de pouca e rara oportunidade – ainda que
absolutamente convincente nos contextos -, estilo por demais simples e outros
babados não satisfazem o gosto apurado dos fruidores contumazes dos Ulisses e
avalovaras na literatura mundial? Mas essa literatura não é constituída apenas
de obras de complexidade e sofisticação de Ulisses
(James Joyce) e de Avalovara (Osman
Lins). Se assim fosse, nem elas nem as editoras existiriam por insuficiência
quase absoluta de consumidores.
Louzeiro,
portanto, constitui uma alternativa mais séria para esse público leitor que ele
respeita, informa e tira, pela força de sua narração, da apatia em que vive
mergulhado. Ninguém, mas ninguém mesmo, consegue para de ler um livro seu. E,
além de se horrorizarem com o que lêem, são tomados de uma santa indignação
contra todas essas iniquidades que nos rodeiam e nos ameaçam durante todo o
tempo e em qualquer lugar, e que muitas vezes nos passam despercebidas ou são
insuficientemente conscientizadas.
Enfim,
negar a condição de escritor de José Louzeiro é, no mínimo, uma bobagem. Podemos
ter alguma dificuldade em definir sua literatura – não seria a “literatura de corpo a corpo com a vida”,
que nos fala João Antônio? – mas, definitivamente, ela existe, está aí,
vendendo e até mesmo perturbando os acomodados e alarmando os bem-pensantes.
José Louzeiro desnuda uma realidade cruel. E a realidade é mais cruel do que qualquer ficção.
ResponderExcluirGostei da lembrança de que reportagens podem virar matéria para romances e epopeias.