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Os anos de opressão asfixiante

 

A implantação da ditadura militar no Brasil, em 1964, fez com que muitos movimentos reivindicatórios tivessem que restringir sua atuação aos bastidores, só retornando a uma luta mais efetiva nos meados dos anos setenta, quando se inicia um lento processo de abertura política. Assim, embora no final dos anos sessenta já existisse uma maior articulação de grupos voltados para a questão da homossexualidade, somente a partir dos meados da década seguinte começam a surgir, em número cada vez mais expressivo e atuante, publicações e grupos preocupados em construir novas formas de representação.

Contudo, a luta desses grupos por uma maior visibilidade e espaço de atuação sempre foi cercada por um forte sentimento de homofobia por parte da sociedade brasileira de um modo geral. Uma barreira que fez com que os movimentos homossexuais no início fossem compostos por homens e mulheres que procuravam legitimar suas reivindicações através da aliança com outros movimentos minoritários (MacRae, 1990). Constituíam-se em grupos de reflexão que tentavam ajudar seus integrantes a construírem uma identidade mais "positiva", contrapondo-se a estereótipos que os aprisionavam a imagens que os caracterizavam como seres anormais e doentios. Todavia, a tentativa de construção de uma agenda política única, vista como uma forma de fortalecimento do grupo, é apontada por MacRae como um dos fatores que provocou a fragmentação e o pouco tempo de vida de muitos destes grupos mistos.1

Nesse sentido, as divergências quanto às prioridades, tal como a não aceitação de posicionamentos que não levassem em consideração as questões de gênero, fez com que aos poucos muitas mulheres abandonassem grupos como o SOMOS, criando seus próprios grupos. Estes, constituídos normalmente por um pequeno e sempre instável número de ativistas, tinham por objetivo dar amparo emocional e conscientizar as mulheres que frequentavam os guetos lésbicos sobre a importância de um maior ativismo.

Além disso, a instauração de uma atitude mais receptiva por parte de grupos feministas fez com que muitas ativistas lésbicas se integrassem a seus quadros. Em realidade, a maior aproximação entre esses dois grupos decorreu o fato de seus membros compartilharem de muitos pontos em comum como a preocupação com a saúde, a questão da violência contra a mulher e de sua inserção no campo de trabalho. Da maior importância ressaltar que a presença dessas ativistas forçou o movimento feminista a dar mais atenção à questão da sexualidade e, mais especificamente, ao homoerotismo. Entretanto, o convívio entre elas foi sempre tenso ora pela divergência quanto aos objetivos do movimento, ora pelo constrangimento que a aliança causava quando as feministas heterossexuais tinham que procurar o apoio da Igreja, que repudiava qualquer aliança com os grupos lésbicos.2 No entanto, apesar dessas tensões, o Grupo Ação Lésbica-Feminista (GALF), mais conhecido como Grupo Lésbica-Feminista (LF), é apontado tanto por Leila Míccolis quanto por MacRae como o grupo de maior atuação e sobrevida nos anos oitenta.

Entretanto, cabe ressaltar que diferentes vetores implicam em diferentes formas de marginalização. Desta forma, a discriminação torna-se ainda mais incisiva quando a mulher também está marcada pelo estigma de raça. Neste caso, seu grau de invisibilidade/marginalidade torna-se ainda mais contundente. Fator que pode explicar o número escasso de mulheres negras nos diferentes grupos, como atestam MacRae e Míccolis. Todavia, nos anos oitenta, por sentirem-se acuadas ao serem acusadas de traírem os interesses de "sua comunidade" tanto por grupos negros quando privilegiavam a questão da sexualidade, quanto pelos grupos feministas ao quererem trazer para a pauta de discussão a questão de raça, essas mulheres foram aos poucos formando seus próprios grupos na busca por um espaço de onde pudessem lutar por posicionamentos políticos próprios.

Assim, a forte homofobia existente na sociedade brasileira tem feito com que uma grande maioria de mulheres lésbicas (não importando a raça ou a classe social) ainda prefira permanecer anônima por medo das consequências de uma maior exposição pública. Muitas confessam que se sentem compelidas a manter uma aparência de "normalidade" nos locais de trabalho por medo de perder o emprego. Mas o que ocasiona esse forte sentimento de homofobia? Como explicar a reação contrária do público a reportagens e novelas que tentam tratar dessa temática de forma mais "positiva"? Sem querer aprofundar a discussão, pode-se explicar a origem desse sentimento pela forma como se estrutura a sociedade brasileira. Para ser mais clara, a família é percebida como a célula básica sobre a qual se estruturam as relações entre os indivíduos. Assim sendo, à mulher está reservado o papel de mãe e esposa, ou seja, esta é definida a partir de seu papel de reprodutora.3 Desse modo, qualquer mulher que tente fugir a esse princípio básico torna-se vítima de um violento processo de marginalização.

Por isso, teóricas como Judith Butler alertam sobre a importância em acrescentar sempre uma prática política ao nosso dia-a-dia. Uma prática que tenha como mola propulsora o constante questionamento das categorias e significados que procuram delimitar a forma como os indivíduos percebem a si próprios e a sociedade em que se inserem. Trata-se, na verdade, de uma forma de posicionamento que objetiva impedir a perpetuação de ideologias e crenças que impregnam o dia-a-dia das pessoas e que as fazem ver as relações sociais (que se baseiam numa dinâmica entre dominador e subordinado) como parte de uma ordem natural, numa dinâmica que persiste em manter determinados segmentos da população marginalizados.

Trata-se, na verdade, na opinião de Butler, de um processo que se baseia na imposição de paradigmas que obedecem a uma dinâmica marcada por uma estrutura dualística que delimita a esfera da exclusão e da inclusão, ou seja, o espaço do inteligível. Para tanto, observa-se uma proliferação de discursos que procuram delinear e delimitar a percepção do corpo através da veiculação de modelos fantasmáticos que, tornando-se elos de uma cadeia de significação, impelem o sujeito a um processo identificatório que se caracteriza por obedecer a uma dinâmica reiterativa e restritiva.4 Isto implica em dizer que o processo para a materialização do corpo, ou seja, seu ingresso no domínio do simbólico, estrutura-se a partir do repúdio a certas identificações e desejos. Um processo que, ao restringir as possibilidades de circulação de certos significados, vai implicar na dificuldade encontrada por diferentes pessoas em articular determinadas formas de desejo, como se verá em alguns poemas de Renata Pallottini, tema do próximo artigo.

1 Todavia, uma pesquisa na Internet comprova a persistência da prática de formação de grupos homossexuais mistos como Etcetera e tal (1991) e Atobá (1985), por exemplo, nos anos noventa.

2 Apesar da Igreja Católica ter perdido muito de seu poder, não se pode negar sua influência na hora da discussão de questões polêmicas como o aborto (até hoje proibido no Brasil, apesar das campanhas). Além disso, sua atuação junto aos grupos feministas para a obtenção da anistia política no final dos anos setenta foi decisiva.

3 Marilena Chauí ( 1988) em seu estudo sobre a sexualidade feminina comprova que está proibida à mulher qualquer atividade sexual que não tenha como princípio básico a reprodução, uma vez que "o sexo (é permitido) apenas sob o prisma da reprodução da espécie, ou como função biológica procriadora".

4 O grande número de reportagens preocupadas em traçar o novo perfil da mulher "moderna" em revistas e jornais publicados nos anos oitenta comprova a tese defendida por Michel Foucault que aponta a proliferação de discursos como um mecanismo regulador dos desejos dos indivíduos.

Referências:

BASSANEZA, Carla. Revistas femininas e o ideal de felicidade conjugai (1945-1964).

Pagu, p. 111-148.

BUTLER, Judith. The pleasure of repetition. In: GLICK, Robert A.; BONE, Stanley

(Eds.). Pleasure beyond the pleasure principle. New Haven: Yale University Press, 1990. p. 259-275.

. Imitation and gender insubordination. In: ABELOVE, Michèle; BARALE, Aina;

HALPERIN, David M. (Eds.). The lesbian and gay studies reader. New York: Routledge, 1993. p. 307-320.

MacRAE, Edward. A construção da igualdade: identidade sexual e política no Brasil da "abertura". Campinas: Editora da UNICAMP, 1990.

MÍCCOLIS, Leila. E-mail para a autora. 30 de setembro de 1998.

 


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