(Quarta parte)
Suas
impressões revelam angústia e falta de sentido na vida
O Brasil teve também um time considerável de bons cronistas e
entre eles se inclui um que vinha do Espírito Santo. José Carlos Oliveira, o
“Carlinhos Oliveira”, era o nome do conterrâneo e do companheiro de crônicas,
as quais faziam sucesso – com razão – sobretudo nos anos 60. Existe algumas
semelhanças no estilo de Carlinhos Oliveira e de Rubem Braga, dois cronistas
capixabas, afeitos que eram à melancolia, mas das crônicas braguianas ainda
emerge uma suave aceitação da vida e das coisas como elas são, ao passo que nas
crônicas de Carlinhos Oliveira – sobretudo as que foram publicadas em “A revolução das bonecas”
(1967) – a
angústia, a amargura, o vazio e o nada costumam dar o tom. Nota-se a
conformação e até a alegria nas suas crônicas, mas apenas depois de um denso e
doloroso mergulho existencial.
Deve-se lembrar, contudo, que Carlinhos negava ser o personagem
das suas crônicas – não era a si mesmo que se referia quando dizia “eu”. O
cronista alegava possuir mais heterônimos do que Fernando Pessoa, embora nenhum
lhe servisse de refúgio para a sua consciência. Por isso, a matéria das suas
crônicas não seria tanto a sua vida pessoal, e sim “determinadas angústias passageiras ou alegrias igualmente condenadas,
que descubro no coração ou no próprio vento”. Por outro lado, o cronista
assume que uma literatura honesta deve refletir como um espelho o que se passa
por dentro e por fora do autor no momento em que escreve. Era ainda o seu coração que Carlinhos auscultava, mas o que ouvia
era a vibração de uma vida comum a todos nós. Ele era uma espécie de fotógrafo que flagrava a nossa infelicidade –
quem é que, diante de uma imagem captada, se preocupa com o estado pessoal do
fotógrafo? E o que os instantâneos trazidos à luz pelo cronista revelam é,
sobretudo, a grande falta de sentido.
Sim, enquanto os outros
viviam na doce ilusão de que há um sentido a extrair do mundo, o cronista
expunha a amarga desilusão da vida: ainda é noite e sempre será. Entre todos os
destinos oferecidos a um homem, não havia um só satisfatório. Nessa (falta de)
perspectiva, “existir” era algo duro, árido, insípido, “pior do que uma cruz,
porque nem sequer doía, nem sequer pesava”. Haveria uma solidão cósmica –
tristeza sem remédio, obrigando o ser humano a recorrer a máscaras, uma por
dia, cada qual mais engenhosa, para se esconder daquilo que o esmaga. Aquele
mesmo cansaço que destruíra Nietzsche também aniquilava o cronista.
Nem sempre havia sido
assim, contudo. Aos 18 anos, o cronista – ou uma das versões de si mesmo –, que
andava quebrando a cabeça para saber que diabo de coisa é essa que se chama de
vida, havia decidido romper com todos os preconceitos, e mesmo com as crenças
mais sensatas que vinha acumulando. Quis começar de tudo de novo, o que o
deixou sem céu para onde ir depois da morte. Tornou-se amassado pelo excesso de
lucidez, lacerado entre a fome de religião e a incapacidade crítica de
acreditar em Deus – embora nunca tenha alcançado a graça de um ateísmo
completo. Mas era cioso da sua liberdade e da sua independência, não suportando
toda adesão cega a qualquer espécie de crença, seja religiosa, política ou
social.
Em uma perspectiva
talvez camusiana, o
cronista se recusava a dar qualquer salto de fé, mas, igualmente, não cedia aos
apelos da “razão”, por saber que ela própria exige a sua parcela de crença, ao
não dar conta de explicar o absurdo da existência. Diante disso, o que podia
fazer era chafurdar em cima da lama de uma vida sem propósito: “Talvez eu seja
a única pessoa que, na minha geração, se recusa a construir-se; que se oferece
na forma de uma sequência de fragmentos; que não crê em nada, em suma”.
Negava-se, portanto, o “vir-a-ser”, e era por isso que, aos 30 anos, o cronista
estava no limiar da sua personalidade: ainda não havia nascido. Havia analisado
minuciosamente a si mesmo e concluído que nada havia feito até então em sua
vida, além de trair sistematicamente os seus princípios e ideais. Mas aquele
que chegasse bem vivido aos 30 anos não poderia esperar mais do que repetição –
e então a própria morte.
Seria, aliás, a morte a
única saída viável para uma realidade marcada pelo vazio e pelo nada? O
cronista já acordava pela manhã com essas palavras na cabeça: “Não te esqueças de que vais morrer”.
Sabia que iria morrer cedo – bem mais cedo do que merecia. Mas parecia possível
adotar certas estratégias para conviver com o absurdo. O cronista já não ousava
exteriorizar completamente o seu verdadeiro ser – difícil, silencioso e
enraivecido. Em vez disso, mostrava uma espécie de estilhaço, a que chamava de
“eu provisório”. Era um péssimo administrador de si mesmo, o contrário do que
queria, e só se podia esperar que esse sentimento contra si fosse estendido
também aos seus semelhantes, mas a verdade é que o cronista também revelava se
apegar à fragilidade do ser humano e era solidário à sua capacidade de errar.
Não apenas era possível viver e conviver no meio da falta de sentido, mas
inclusive encontrar nisso satisfação.
Afinal, no ponto mais
extremo da desesperança havia certa alegria, no fundo da mais negra
infelicidade jazia certo descanso, e na maior falta de sentido havia a compreensão
de algo superior. De sua parte, havia certa inveja dos que se realizam, dos que
sabem o que querem, mas o cronista não prometia corrigir a si mesmo, realizar
tarefas adiadas. O ideal seria que se conseguisse aceitar a existência e de
fato existir ao mesmo tempo em que se contemplasse as suas próprias ações, bem
como as alheias. Claro, em dado instante, só poderia haver consolo em pousar a
cabeça sobre os seios maternos, mas mesmo a coragem e a valentia – necessita-se
algo assim para viver no vazio – não prescindem do desamparo, e nem significam
segurança.
Essa existência mostra-se
ainda a autêntica, porque também há os que só existem quando os outros pensam
neles – o famoso “existir em público”, a revelar um medo vertiginoso do nada,
uma recusa do ser, um modelo de suicídio. O “não ser” de uma celebridade assemelha-se
com o “ser”, apenas com a derrota no lugar da alegria. Deixa-se de ser
para se tornar o que se espera que seja, e poucos famosos resistem a essa
tentação. Quem poderia dizer que essa negação da existência seria melhor do que
assumir a sua falta de sentido, como faz o cronista? A solidão dele resulta
de uma conquista cruel, escadaria sem-fim cujos degraus são sempre os mesmos.
Os tempos modernos têm
nos feito passar por cima de muitas dessas inquietações, de modo que resolvemos
simular a nossa felicidade, mas há um momento em que desce sobre nós uma
amargura sem origem definida. Há certas coisas que o cronista não entendia como
é que nós podemos consentir. Por exemplo, ficar oito horas com sapatos nos pés,
a mesma roupa, de gravata, sem saber como é que o vento está inclinando as
folhas das árvores. “Trabalhar até tarde, embotar suas melhores qualidades para
conseguir se sustentar e sobreviver, ainda que ao custo dos seus melhores
sonhos. Entregar ao patrão os dias mais lindos, mas o próprio patrão está
envolvido na engrenagem e tem lá a sua úlcera, o seu medo do câncer”. Ao final,
voltar para uma casa que aprisiona semelhante a jaula. Que coragem no
compromisso do casamento, e a audácia em ter filhos!
Um aspecto interessante
que, mesmo explorando de forma tão profunda a angústia do ser, o cronista – e
já agora se pode falar efetivamente em Carlinhos Oliveira – não pretendia fazer
com que os seus leitores se desmotivassem na vida. No ato de escrever –
que ele considerava tão efêmero quanto o existir –, ele desejava que, onde
aparecesse a palavra “angústia”, as pessoas lessem “esperança”. Ao colocar no
papel a amargura da vida, o cronista já provava que, no mínimo, ela não era tão
“indizível” quanto o sofrimento de cada um podia fazer acreditar. Escrita, essa
dor já se encontrava em um plano mais claro. E então talvez fosse mais fácil de
se lidar com ela.
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