(Primeira Parte)
“Surrealista por temperamento, anarquista por indisciplina de berço,
boêmio por amor à vagabundagem, agregado à elite pensante por acaso”, era como se definia. Com personalidade complexa, Carlinhos Oliveira incorporou
diferentes papéis ao longo da vida: escritor maldito, criança abandonada, bon vivant mulherengo, intelectual
perspicaz e independente. Mas para um de seus melhores amigos, César Thedim,
ele era simplesmente “um doido em forma
de canção”.
Apesar de ter sido um boêmio militante
a vida toda, protagonista de porres e escândalos nos melhores botecos de
Copacabana ao Leblon, seus temas iam muito além da fauna noturna. Em textos de
alta voltagem literária, comentava todos os assuntos: religião, futebol, sexo,
política, contracultura, drogas, boemia, moda, lazer, imprensa, carnaval,
transformações urbanas, música popular, crime, neuroses, conflitos sociais,
artes, televisão, ecologia. Sempre assumindo posições, expondo-se ao julgamento
público, o que lhe rendeu bons debates e alguns desafetos. Alternava amenidades
inconsequentes com provocações e polêmicas, colocando o dedo na ferida da alma
brasileira, sem perder a ternura. Para isso subverteu as convenções da crônica
tradicional. Um dia era monólogo psicológico, outro dia era um esquete teatral
ou fábula, diário, sátira, poema em prosa, pastiche, autoficção, estilo do qual
foi precursor no Brasil. Em 1981 ele estendeu a autoficção da crônica para o
romance “Um novo animal na floresta”,
narrativa polifônica em que autor, narrador e protagonista se fundem num único
sujeito.
Cronista vocacionado desde os 16 anos,
aos 18, em 1952, já praticava o que só na década seguinte, nos Estados Unidos,
seria denominado Novo Jornalismo, ou jornalismo literário. Como nas reportagens
“O Café Vermelhinho até parece moça de
boa família” (no livro “O homem na
varanda do Antonio’s”) e “Mãos
estendidas para o parlamento” (no livro “Máscaras e codinomes”).
Em 1953 já alertava sobre o problema do
menor infrator: “Estamos criando uma
geração de revoltados sociais”. Confessional por temperamento, transformou
experiências, pensamentos e sentimentos pessoais em textos que transcenderam as
circunstâncias imediatas. Tratavam de violência, miséria social e moral,
hipocrisia, injustiça, preconceitos, morte, intolerância, solidão, liberdade,
amor, enfim, os labirintos e abismos da condição humana. Por isso a maior parte
de suas crônicas não envelheceu. Uma de suas frases se encaixa perfeitamente no
atual momento brasileiro: “Alguma coisa
está errada, alguma coisa está podre, e o fedor envenena a minha consciência”.
O conjunto de suas mais de 3 mil
crônicas formaram um painel da sociedade brasileira nas efervescentes décadas
de 1960 e 1970. Depois de ter organizado quatro volumes de crônicas dele (“O homem na varanda do Antonio’s”, “Máscaras e codinomes", “Flanando em Paris” e “O Rio é assim”), Jason Tércio, jornalista
e escritor e autor de Órfão da tempestade,
a biografia de Carlinhos Oliveira, planejou mais três volumes, sobre os temas
Humor, Mulher e Cultura, crônicas sobre música, cinema, teatro, imprensa, TV,
artes plásticas e literatura nos anos 1960 e 70.
Pois é caro amigo. Não conheci Carlinhos Oliveira. Mas pelo que você anotou, ele foi prodigo na produção intelectual, foi um visionário quando afirma. ”Alguma coisa está errada, alguma coisa está podre, e o fedor envenena a minha consciência”. Veja o Brasil hoje, neste momento. É o país em que existem mais smartphones per capita do mundo, com cerca de 60 milhões de analfabetos funcionais. E num mundo em que analfabetos funcionais aparecem como influencers e palestrantes, não há como esperar um cérebro saudável. O fedor emanado envenena a consciência de todos.
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