Uma
poesia de caráter que nasceu madura. Não na idade que se pressente bem jovem
até no desalinho das edições mal tratadas, na falta de sequência dos poemas,
porém no tema, na maneira de apresentá-los, no calor de certas afirmações. Não
há mais lugar para o poema enluarado. E se algum ainda persiste por aí, pode-se
dizer de antemão que é um poeta velho, nem que cronologicamente tenha 20 anos.
Impressão
marcante nos deixa os poemas de Lindolf Bell. Sua poesia tem carne. Grita.
Blasfema. Vive, portanto, e de uma vida que não se compraz no usufruir a hora
que passa. Nem no dizer de banalidades líricas. Os jovens das gerações 60 e 70
demonstravam desde logo a força de sua poesia no uso que faziam das palavras.
Lindolf Bell, por exemplo, tem um vocabulário que, por vezes, é dele só. A
parte não aprende de pronto a sua mensagem. Mas sente o calor que suas palavras
querem transmitir. É uma poesia de alta-voltagem. Ora, poesia se faz com
palavras e a do poeta catarinense (melhor diríamos “na moenda” dos poetas) uma
ressonância que não têm nos dicionários, que são apenas sarcófagos em que se
guardam as letras das palavras.
Temos
para nós que uma poesia assim é mais para ser dita do que para ser lida. Os poemas
de Bell (alguns pelo menos) devem até ser gritados. Com toda a força dos
pulmões. Não para assustar os velhos de ouvidos moucos de esclerose, mas para
afirmar. E as afirmações nos dias que passam precisam ser berradas para serem
entendidas. Vivemos num mundo de barulho, e se os poetas não dominam o rumor
das máquinas de guerra a humanidade estará perdida.
Boris
Pasternak definiu a poesia como uma “tensão
tradutora”. Entre as inumeráveis descidas aos infernos, que constituem as
tentativas de surpreender o mistério poético, intentadas por todos os grandes
criadores, nas épocas fecundas de vida espiritual, a que me parece mais
adequada para propor como ideal a ser atingido pelo poeta Lindolf Bell é essa
intuição do grande mestre russo.
Há
um motivo especial para fazê-lo, pois tudo quanto conheço da produção de Bell
(principalmente após a leitura de “Cartas
aos Desconhecidos”), leva-me a crer que há na raiz de sua necessidade de
criar, no âmago mesmo de sua vocação poética, alguma coisa inquietantemente constante,
uma incógnita que se oferece incansável e perturbadoramente: a tensão de
traduzir em linguagem poética os acontecimentos, os fatos que o envolvem e dos
quais ele é testemunha, comparsa ou agente, nunca, porém, espectador
indiferente e ocioso – e por conseqüência, muitíssimo menos numa espécie de
traidor. Admirável na poesia do poeta catarinense a fome de comunicação que
encharca versos como estes: “Os corações
saberão erguer-se como mãos para tocar-se”.
Atraente
nele o lançar-se com avidez e cólera sobre os espólios e os despojos, “cheio de arestas e dilemas” a “viver com a vida entre os dentes como um
sabre”. Como não há no poeta o germe da traição, da covardia, da omissão –
esse vergonhoso resgate que muita geração de poetas tem pago em nosso tempo ao
luxo de poder afirmar que os acontecimentos aborrecem – sua temática incide
sobre os problemas existenciais nua e cruamente: “Aceitar e passar a existir sem tréguas” e suas dúvidas se formulam
assim: “Convirá viver não do que se vive
mas do que se conquista?”
O
desejo de liberdade diante da realidade opressora no fragmento do belo poema
motivador “Carta a um Irmão”, para
ilustrar com mais vigor o essencial dessa atitude:
“Sentir o peso das abóbodas
e não sucumbir.
Sacudir a árvore com vento
nascido de dentro
para que pássaro nenhum se
agasalhe
e o verde de fruto nenhum
Permaneça em estagnação.
Drenar o presente como um
passaporte.
Parir contra as fachadas dos
muros
para o pânico esplendor
como um barco de asas
ou uma crisálida dentro do
cérebro
fingindo voar”.
A
isto eu chamo de “aptidão ao cântico” e de “intenção de libertar a música”.
Alegro-me, pois reencontro na obra de Lindolf Bell, a chamada fidelidade à
vocação, que me queimara os dedos à leitura dos dois primeiros: “Os póstumos e as Profecias” e “Os ciclos”. Adivinho no poeta o signo de
uma eleição, creio que ele pertence a uma geração, de 1964 até 1980, espalhada
por todo o mundo, cuja a missão era restaurar o verdadeiro sentido da poesia,
que hoje se encontra perdido. Os
escritores e o pequeno público leitor estão exaustos de tanta tentativa
estéril, de tanta elaboração asséptica e abstrata, de tanta pesquisa vocabular,
cujo o único fim, confessado ou não, é reduzir o mistério poético ao nível do
racional e do prosaico, é tosar as asas ao pássaro. Em todo o mundo anda uma
desesperante carência do poético. Ninguém soube reclamar com mais pungência do
que Lindolf Bell, um dos maiores poetas do nosso tempo. Que suas palavras
proféticas, que afirmam a sua catequese, encerrem esta resenha e seja a sua única
justificação:
“Creio estar inserido num
contexto e nada deverá tornar-me alheio: nem as pregações políticas (o mal
maior em todos os tempos); nem a passividade pastoril da grande maioria.
( ... )
Eu creio na vida. Eu me
creio inserido na vida. E a vida é esta geografia-pátria da grande pátria, a
geografia humana multiplicada e infinitamente diferente. A vida é aceitação da
luta, o peito aberto diante da injustiça, o coração aberto para a inundação
fraterna, o uso pleno e consciente de minha liberdade (tão aviltada).
( ... )
E eu convoco-os para me
ouvirem para que eu possa ouví-los e juntos possamos ouvir a vida. Eu
convido-os para abandonarem os óculos escuros, a impotência da falsa
civilização, o comungar com a mentira, a impostura, a demagogia, a angústia
simplesmente pela angústia, e digam uníssonos, geração que se levanta e acredita
em si para acreditar nos outros: eu creio na vida e vou viver a vida, como um
vício e como um prêmio vou viver a vida”.
Lindolf Bell: poeta cheio de energia. Como acreditava na força da palavra/grito/protesto.
ResponderExcluirGravei: "A vida é aceitação da luta."
Recebi mensagem dele, que guardo com carinho.
Logo depois, sua abrupta partida, que pegou a todos de surpresa.
Faz falta.