Pular para o conteúdo principal

Malandros e otários em constante confronto

 

Ilustração de Luísa Vasconcelos


Os personagens de João Antônio são atores de um mundo dividido em dois grupos bacanas ou otários de um lado, e os malandros ou merdunchos, do outro. Ambos os grupos são designados por dois nomes antônimos. Essa antonímia é expressão do caráter contraditório de cada um. Os otários ou bacanas são as pessoas que fazem parte do sistema de produção: pessoas que têm uma vida estável, normal. São os fregueses das profissionais do sexo, os adversários dos profissionais da sinuca, os que possuem dinheiro e o gastam. Os malandros ou merdunchos são os jogadores de sinuca, os cáftens, os ladrões, as prostitutas. São os que obtém o dinheiro “na moleza”. São os que tiram o dinheiro dos otários. Essa qualidade de otário, portanto, vem do fato de darem o dinheiro para os malandros. A qualidade de bacana vem da sua aparência de bem alimentados e bem vestidos, de pessoas da classe média.

Por sua vez, os malandros são merdunchos pela sua condição marginal, sem meio fixo de sobrevivência e sempre vivendo em situações de risco, como se a vida fosse um permanente “aqui e agora”. O dinheiro não está no banco, mas no bolso, mas no bolso do otário, que exige do malandro o exercício permanente da picardia para obtê-lo.

Malandros e otários estão, portanto, em luta permanente, mas essa luta só é dramática para o lado do malandro. Por isso, é sempre narrada da perspectiva do malandro, do merduncho. Eis o mundo nas histórias de João Antônio, visto do ponto de vista de quem está em posição social inferior. O mundo visto pelo leão-de-chácara, pelo operário do subúrbio, pelo menino- engraxate, pelo jogador de sinuca, pelo morador de conjunto habitacional construído pelo governo, pela prostituta, pelo soldado. É o que ocorre nos contos “Leão-de-Chácara”, “Meninão do Caixote,” “Paulinho Perna Torta,” “Natal na Cafua”. Esse o ponto de vista de quem olha o mundo com ódio, “de bandido para bandido”, como diz o próprio João Antônio. Desse modo o merduncho olha para o otário, que o malandro olha para o bacana.

Essa visão “de fora” do mundo, expressa-se numa linguagem também “de fora,” a gíria. O malandro fala uma linguagem que tudo rebatiza. O sentido do universo muda para quem o vê de baixo para cima, exigindo um vocabulário novo, uma linguagem nova, haurida na fonte de criação, inventada no ato de escrever. Torna-se uma forma que assume a linguagem como expressão de uma visão enraivecida do mundo: agressão e defesa.

O espaço como um ringue

Outra característica de João Antônio o uso demasiado da técnica da descrição. Há descrições longas e detalhadas: a Rua Direita, os salões de sinuca, a antiga zona de prostituição do Bom Retiro, em São Paulo, o bairro boêmio da Lapa, no Rio de Janeiro, a casa de loucos, a Cidade de Deus, as pessoas, as ruas. Há mesmo dois livros que são pura descrição: Lambões de Caçarola e Ô Copacabana! As esquinas das Avenidas Ipiranga com a São João (São Paulo), muito tempo antes de Caetano Veloso mitificá-la em “Sampa”, assim era vista por João Antônio:

Uma, duas, três mil luzes na Avenida São João!

...........................................................................

Malagueta, Perus e Bacanaço faziam roda à porta do Jeca, boteco da concentração maior de toda a malandragem, à esquina da Ipiranga, fecha-nunca, boca do inferno, olho aceso por toda a madrugada. Lá em cima, seu luminoso apagava e acendia um caipira cachimbando.

Como se observa, o espaço é visto, o espaço é percorrido. Outra constante em João Antônio: a movimentação das personagens, que andam, perambulam, procuram, com a finalidade de cumprir uma tarefa, de buscar alguma coisa. É o que acontece em “Joãozinho da Babilônia”, “Frio”, “Afinação da arte de chutar tampinhas” e “Malagueta, Perus e Bacanaço”. No conto “Frio”, o menino carrega um embrulho desde a Rua João Teodoro até a avenida Água Branca, percorrendo a pé quilômetros à noite, sozinho, com frio, numa tarefa arriscada, com medo da polícia. Em “Busca”, Vicente não sabem muito bem o que busca. Em “Malagueta, Perus e Bacanaço”, os personagens estão à procura do otário, do dinheiro, do enfrentamento – que acontece finalmente no “Joana D’Arc”, na Água Branca, onde enganam o inspetor Lima, a quem fazem de otário. Em contrapartida, no largo de Pinheiros, os mesmos personagens são enganados por Robertinho, malandro mais malandro do que eles.

Essa a outra importância que o espaço assume no livro: o de enfrentamento, de luta. Otários e malandros se enfrentam na mesa de sinuca. Polícia e povo se defrontando na praça da malhação do Judas. Na Rua Aimorés, a polícia põe fogo nos prostíbulos e as profissionais do sexo morrem queimadas, carbonizadas. Ainda nesse local, ocorre outro conflito entre cáften e prostituta. E tais disputas acontecem de preferência à noite, como em “Frio”, “Leão-de-Chácara”, ou no picaresco caminhar anti-heróico de Malagueta, Perus e Bacanaço, desde o anoitecer até o amanhecer em Pinheiros.

Quem pretende sobreviver têm uma única filosofia: não se deve dar chance para o inimigo ou para a vida. Quer dizer, por exemplo, a postura de Laércio Arrudão, vista da ótica de Paulinho Perna Torta:

“A ele só interessa é furtar, roubar, beliscar, morder, recolher, entortar, quebrar, tomar, estraçalhar. Laércio Arrudão me quer vivo e cobra como ele, a cobiçar e tomar todas as coisas alheias.”


Comentários

  1. Parabéns Rubens.

    Sua crônica revela com maestria o embate entre os dois universos que coexistem na tensão social latente. Um retrato vívido e visceral da marginalidade, conferindo à linguagem uma intensidade feroz, marcada pela gíria que molda a identidade dos personagens. A riqueza da descrição espacial então, transforma os cenários urbanos em palcos de luta, reforçando a pulsação realista e crua do texto. Fiquei impressionado.

    Cido

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Agradeço pelo feedback Cido e pela análise crítica sensata e sincera.

      Excluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

O PAU

pau-brasil em foto de Felipe Coelho Minha gente, não é de hoje que o dinheiro chama-se Pau, no Brasil. Você pergunta um preço e logo dizem dez paus. Cento e vinte mil paus. Dois milhões de paus! Estaríamos assim, senhor ministro, facilitando a dificuldade de que a nova moeda vai trazer. Nosso dinheiro sempre se traduziu em paus e, então, não custa nada oficializar o Pau. Nos cheques também: cento e oitenta e cinco mil e duzentos paus. Evidente que as mulheres vão logo reclamar desta solução machista (na opinião delas). Calma, meninas, falta o centavo. Poderíamos chamar o centavo de Seio. Você poderia fazer uma compra e fazer o cheque: duzentos e quarenta paus e sessenta e nove seios. Esta imagem povoa a imaginação erótica-maliciosa, não acha? Sessenta e nove seios bem redondinhos, você, meu chapa, não vê a hora de encher a mão! Isto tudo facilitaria muito a vida dos futuros ministros da economia quando daqui a alguns anos, inevitavelmente, terão que cortar dois zeros (podemos d...

Trechos de Lavoura Arcaica

Raduan Nassar no relançamento do livro em 2005 Imagem: revista Usina             “Na modorra das tardes vadias da fazenda, era num sítio, lá no bosque, que eu escapava aos olhos apreensivos da família. Amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma, vergada ao peso de um botão vermelho. Não eram duendes aqueles troncos todos ao meu redor velando em silêncio e cheios de paciência o meu sono adolescente? Que urnas tão antigas eram essas liberando as vozes protetoras que me chamavam da varanda?” (...)             “De que adiantavam aqueles gritos se mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera? Meu sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um pomo...

O Visionário Murilo Mendes

Retrato de Murilo Mendes (1951) de Flávio de Carvalho Hoje completaram-se 38 anos de seu falecimento Murilo Mendes, uma das mais interessantes e controvertidas figuras do mundo literário brasileiro, um poeta difícil e, por isso mesmo, pouco divulgado. Tinha uma personalidade desconcertante, sua vida também constitui uma obra de arte, cheia de passagens curiosas de acontecimentos inusitados, que amava Wolfgang Amadeus Mozart e ouvia suas músicas de joelhos, na mais completa ascese mística, não permitindo que os mais íntimos se acercassem dele nessas ocasiões. Certa vez, telegrafou para Adolph Hitler protestando em nome de Mozart contra o bombardeio em Salzburgo. Sua fixação contemplativa por janelas foi assunto do cronista Rubem Braga. Em 1910, presenciou a passagem do cometa Halley. Sete anos depois, fugiu do internato para assistir ao brilho de outro cometa: Nijinski, o bailarino. Em ambos os casos sentiu-se tocado pela poesia. “Na...