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Mundo insólito

 

Ilustração de Claire Omar


“Naquela noite, e nas outras, o Grande Uzk fez o que quis, virou o mundo pelo avesso na nossa frente, desmanchou-o e montou de novo de maneira diferente, nós vendo tudo e não acreditando, até hoje não acredito.”

(Fragmento do conto Sombras dos Reis Barbudos)

 

O mundo de José J. Veiga reflete o centro-oeste brasileiro, são as cidades miúdas do interior do país, eis a zona rural – o sertão. Um universo que caminha aparentemente no ritmo do carro de boi e da toada, dos “causos” contados ao pé do fogo, com cheiro de fumo de rolo e pontilhados de espantos e assombramentos... Um cosmo que a gente da cidade não vive.

É possível não acreditar nas histórias de José J. Veiga, no seu olho de ver o que está por trás da realidade de todo dia, escondido em camadas mais fundas – o mundo virado pelo avesso na nossa frente, desmanchado e montado de maneira diferente. E aí a gente vê que não é só o mundo do sertão: é também o nosso, cotidiano, onde acontece o que chamamos de “fantástico” e que não é mais do que uma realidade que quase nunca enxergamos...

Um clima de tensão constante percorre a obra de J. J. Veiga, a partir de sua estréia como escritor em 1959, com o livro de contos Os Cavalinhos de Platiplanto (adaptada pelo teatrólogo Cláudio Dolcismásculo de Presidente Prudente há alguns anos). É o clima da opressão representada seja pela violência física, seja pela violência moral, mas sempre violência – subjugando homens, mulheres, crianças, cidades inteiras.

Ligado a uma tradição literária cujas raízes podem estar no eslovaco Franz Kafka ou no inglês Aldous Huxley, pela sua maneira de denunciar um mundo cada vez mais difícil; ou ainda no brasileiro João Guimarães Rosa, por sua inalienável relação com o sertão, José J. Veiga, entretanto, faz de sua literatura algo muito pessoal, cuja visão de mundo procura registrar, sempre numa linguagem simples (e até despojada de quaisquer aparatos lingüísticos), uma realidade mais complexa – menos aparente, como ele diz -, que resvala os limites do absurdo. Uma estranha realidade que ele desencava ora no mundo perdido do sertão de sua infância, ora no mundo que está à sua volta.

Ambientada em cidades pequenas, cujos modelos poderiam ser a Corumbá ou a Pirenópolis do passado, ou ainda fruto de sua própria imaginação, trata-se de uma obra reflexiva, isto é, espelho de uma realidade (a brasileira ou qualquer uma), levando o leitor a examiná-la pela meditação. Nesse sentido, ultrapassa o aspecto exótico que em princípio assume, por estar lidando como elemento primitivo inserido numa atmosfera de pesadelo, para se situar no âmbito da obra política, enquanto relação humana – na interpretação mais ampla dessa palavra. Suas obras são alegorias – representam determinadas situações para dar ideia de outras – e, dessa forma, são sinais de alerta para as possibilidades realistas que encerram.

Desse modo, é possível afirmar, por exemplo, que os fatos insólitos acontecidos em Manarairema, de A Hora dos Ruminantes (novela, 1966), são a representação simbólica de qualquer ditadura, onde os bois e os cães invasores representam a autoridade. Ou não: pode-se afirmar que foi tudo imaginação – não passa de alucinação coletiva. Aliás, não é outra a explicação para o insólito na novela Sombras de Reis Barbudos (novela, 1972) conjetura essa hipótese:

“ – Alucinação coletiva. Todo mundo pensa que está voando ou que está vendo os outros voarem. Porque todo mundo deseja muito voar, quanto mais alto e mais longe melhor.

- Alucinação coletiva. É uma doença, então?

- Não, não. Pelo contrário. É remédio.

- Remédio. E serve para quê?

- Contra loucura, justamente.”

Ditadura, alucinação, loucura ou lucidez, nas fábulas de José J. Veiga os personagens estão sempre se defrontando com situações incompreensíveis, impostas por sistemas estabelecidos independentemente das vontades deles. Situação absurda acontece em Pecados da Tribo (1976), uma novela sombria, onde um personagem traz o sugestivo nome de “Consul-não-sei-de-onde”, revelando caráter desconhecido do elemento que vem de fora para subjugar a maioria dos personagens. Vale a pena ressaltar um trecho dessa novela, em que se define esse mundo, de maneira simples e magistral:

“Quando as pessoas passam a andar de cabeça baixa, como se procurassem alguma coisa no chão, e o que era familiar e inocente de repente ganha feições estranhas e ameaçadoras, e todo mundo passa a falar baixo ou não falar nada, com medo da própria voz, e qualquer barulho inevitável soa como se fosse um trovão e causa perda de voz, arrepios, suores frios, e até pensamentos têm de ser vigiados e tratados como manifestação de doença perigosa, é sinal de que alguma coisa muito séria está acontecendo ou vai acontecer a qualquer momento”.

 

 

 


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