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Absurdo da condição humana

 

Ilustração de Rafael Rubião

Embora seus livros tenham começado a ser publicados há mais de cinquenta anos e sido elogiados por importantes escritores e críticos, a obra de Murilo Rubião ainda é pouco conhecida dos leitores brasileiros. Seus livros foram traduzidos para o inglês, alemão, tcheco e espanhol, além de diversos contos seus terem sido publicados em países como Canadá, Colômbia, Polônia, Portugal e Itália. Um dos motivos pode ser o fato de ele ter se dedicado basicamente a contos, cerca de cinquenta em toda a sua vida e trinta e três deles selecionados para seus livros.

Outra questão é que seus textos costumam causar estranhamento inicial por mesclar o real e o fantástico de maneira pouco comum na literatura brasileira. Quer esses fatores tenham ou não impedido que a obra do autor se disseminasse com mais facilidade, é fundamental perceber como eles são decisivos para compreender os contos desse escritor mineiro.

Costuma-se atribuir a pouca produção de Murilo Rubião ao trabalho meticuloso com a linguagem, a busca obsessiva pela palavra exata, pela clareza do texto, pelo correto encadeamento dos fatos. Não é à toa que ele tenha reescrito e republicado muitos de seus textos ao longo da vida e, em casos como o do conto O convidado, tenha demorado mais de vinte anos para terminá-lo. Esse trabalho árduo não era um capricho do autor. O cuidado extremo com a linguagem tornou-se fundamental para entender a essência de sua obra: a maneira como o fantástico aparece nos contos.

Um dos aspectos mais importantes de seu trabalho é a falta de hesitação dos personagens e dos narradores diante das situações fantásticas. Em outras palavras, por mais que habitem a realidade cotidiana, eles não se espantam nada com os absurdos que vivenciam no fantástico. No conto Teleco, o coelhinho, por exemplo, o narrador conversa com um coelho na maior naturalidade, sem a admiração que Alice demonstra em suas experiências fantásticas no país das maravilhas. É por isso que os contos de Rubião causam tanto incômodo e estranhamento nos leitores. Além de não haver explicações racionais, os acontecimentos mais extraordinários não provocam rupturas importantes na narrativa. Ao contrário, costumam ser aceitos como parte natural do cotidiano. Tal aspecto fica mais do que nunca evidente nas primeiras linhas de Os dragões, quando em sua primeira frase o narrador declara de pronto: “Os primeiros dragões que apareceram na cidade muito sofreram com o atraso dos nossos costumes”. O período é construído de tal forma que o efeito de estranhamento se desloca do aparecimento de seres fantásticos na cidade para o atraso de seus moradores.

Conforme a ciência, o capitalismo e a tecnologia foram se estabelecendo e o mundo foi se tornando menos misterioso e encantado, também o fantástico passou a retratar o homem moderno, o homem submetido a um mundo cada vez mais complexo cujo funcionamento ele não é mais capaz de compreender. Assim, os acontecimentos absurdos presentes nos textos acabam por denunciar o absurdo da condição humana. Dessa maneira, Franz Kafka, um dos precursores do gênero no século XX, concebe, no conto A metamorfose, um personagem que acorda transformado em uma barata e, no romance O processo, um homem que é preso e processado por um crime jamais conhecido. Nos contos de Murilo Rubião também predomina essa visão pouco otimista do ser humano no mundo, dirigida ou a questões mais contemporâneas ou àquelas mais universais. No primeiro caso, no conto O ex-mágico da Taberna Minhota o narrador vê seus poderes mágicos desaparecerem depois que ele se torna um funcionário público submetido à tediosa e insensata rotina do trabalho burocrático. Do outro lado, há o exemplo de Alfredo, que trata da busca por algum sentido na existência humana.

Mesmo com pouca tradição em que se apoiar, a maestria de Murilo Rubião no trato do fantástico revela-se em múltiplas dimensões. Percebe-se a dificuldade em achar um padrão, uma maneira esquemática de apresentar aos leitores seu universo como elemento essencial na sua obra. Rubião diferencia-se no uso de trechos bíblicos em todos os seus contos que antecipam temas, situações e idéias presentes no enredo e, comumente, ganham novos sentidos depois de lidos os contos. Ressalta-se que, embora retiradas da Bíblia, não há nelas conotação religiosa. Sua função está mais relacionada com apontar ao leitor que, embora se retratem ali seres e acontecimentos particulares, a intenção é universalizar, abordar o homem em suas dimensões mais amplas. Em Teleco, o coelhinho, a epígrafe nos permite perceber que por trás da história de um ser que se metamorfoseia continuamente em busca de uma identidade está uma reflexão sobre “o caminho do homem na sua mocidade”.

A obra de Murilo Rubião é extremamente rica e complexa. Aos leitores que se aventurarem em suas criações, em que fantasia e realidade caminham lado a lado, entrarão em contato com um trabalho inovador e ousado de criação literária, e vislumbrarão o que há de mais essencial no ser humano.

 

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