Amava a arte por cobrir o horror da natureza,
a exemplo dos seus cânticos sobre os cosméticos,
pelos quais as mulheres disfarçam e apagam o seu cosmo
No século XIX, a história estava
sendo retalhada pelas ideias de Hegel e Marx, no entanto, aparece uma figura
controvertida que divide a história da poesia francesa em duas partes, e após
um século, sua obra trona-se um marco do modernismo: esse personagem
contestador, religioso e conservador chama-se Charles Baudelaire. Enquanto os
poetas da época preocupavam-se simplesmente em ser um esteta, homem da “arte
pela arte”, com os parnasianos (Leconte de Lisle e José Maria de Heredia), que
cultivavam os soberbos impassíveis e frios alexandrinos em temas do passado
ligados às figuras da mitologia grega.
Baudelaire chocava na Paris de 1850,
dedicando-se à construção de versos formalistas e irrepreensíveis, retratando as
velhas terras da capital dos sonhos, Paris. Numa língua cáustica, as visões do
povo humilde da cidade em esboços insignificantes, instantes do efêmero: um
cisne que escapou de seu viveiro, uma viúva que assiste a um concerto de música
ou, então, as velhinhas que vemos caminhar apressadamente à tardinha, o
pitoresco e nada de instantâneo. O que se descobre são os fios furta-cores de
eternidade, de permanência, que luzem por detrás dessas cenas fulgurantes,
essas cenas que transparecem encerrar por si. O poeta é um mercador do
sobrenatural na natureza, a eternidade no cotidiano, é sem dúvida, a passagem
entre o instante e o eterno em que reside a atualidade do autor, o que
constataremos ao ler seus Quadros
Parisienses em 2014 com a mesma ótica que Baudelaire deu luz às personagens fugidias e imortais de
1850.
Consciente, tendo uma ideia
elevadíssima de sua função cínica, cruel, muitas vezes atroz, é também um homem
obcecado e crucificado pela sua tarefa: “Sejais testemunhas, - grita ele em seu
desespero, - de que cumpri meu dever”. Porém, quando procura definir o espaço
do poeta entre os homens, ele o qualifica junto a outras duas categorias : “Grandes entre os homens existem somente o
poeta, o padre e o soldado”. É certo por esta opinião que Baudelaire era um
espírito religioso, mas num mundo já afetado pelo ceticismo, pela
descristianização. Numa volta às regras, lança a sua reverência aos poetas
censores do século de Luís XIV, em seus admiráveis poemas de As Flores
do Mal (Les Fleurs du Mal), encontra-se
mais como um dramaturgo, pois seus versos são impecáveis, rigorosos, de um
classicismo altivo.
Os apreciadores do poeta marginal
notarão em seus estudos críticos ou em sua correspondência não ter nenhuma compaixão
em atacar os românticos e a sociedade em seu messianismo e profetismo social
corrosivo. Ele denuncia a alucinada religião do futuro feita pelas mãos do
homem, descrente do progresso, aliás, o progresso não interessa como prova
nesta reflexão: “O homem sempre é
semelhante e igual ao homem, isto é, permanece em estado selvagem”. Teimava
radicalmente contra esta ideia de futuro e de progresso o que é a democracia,
odiando as multidões e o povo sadicamente.
Em seus textos transparece a ironia
negra, biliosa, que era habitual, porém, em outras obras fazem imagem pondo a
duvidar de sua sinceridade. O poeta não está ao lado das permanências da
conservação contra o progresso, está nítido de certa maneira na elite, da
aristocracia, dos laços separados do povo, é toda teoria e prática do dandismo
visando senão criar uma espécie de ordem secreta, uma elite moral artificial
marcada por um disfarçante gastronômico mental, etc. Como um profeta e
precursor da modernidade, mostra a sua personalidade em contradições, porque
muitas vezes ao lermos “As Flores do Mal”, surpreendemos um Baudelaire
compadecido pela vida dos pobres como ele foi defensor do operário cantor
Pierre Dupont, que enaltecia a condição operária no início da industrialização.
Assim, todo sentimento da natureza,
no século XX, influenciado pela corrente da Ecologia difundido pelos românticos,
está rigorosamente ausente de Baudelaire. Abrem-se exceções em certas
descrições tropicais, mas tão exóticas que parecem artificiais. Na verdade,
Baudelaire odiava a natureza e tudo aquilo que faz lembrá-la. Amava sim a arte,
aquilo que o homem coloca para cobrir o horror da natureza. Um exemplo são os
seus belíssimos cânticos aos cosméticos pelos quais as mulheres disfarçam e
apagam o seu cosmo.
Vemos aqui a sua apologia ao “dandy”,
este homem programado, inventado pela arte. Baudelaire saia como se fosse um
ator de teatro, caracterizado pelos enfeites e roupas: “um paletó azul com
botões de metal, cujo modelo lhe fora copiado de um retrato de Goethe, tinha
também um paletó preto, de lapela e bem rodado, sem falar num gibão de veludo
com corte bem alongado, uma calça larga de casemira, enquantro a moda na época
eram calças apertadas. Há 25 anos, a LP&M Editores lançou dentro da coleção
“Rebeldes & Malditos”, o volume Os Paraísos
Artificiais (Les Paradis Artificiels),
de Charles Baudelaire, uma investida da maior importância para que se rompa o
fardão do preconceito cultivado pelos acadêmicos.
No poema O Estrangeiro, tradução de Aurélio Buarque de Hollanda, do livro Pequenos Poemas em Prosa (Le Spleens de Paris) da editora Nova
Fronteira, mostra-se um diálogo do próprio autor com o impalpável dentro da
natureza cósmica, onde se vê o sentimento religioso e a abdicação pelos
prazeres materiais, a família e a religião, numa anunciação do nosso século que
influenciaria todos os literatos.
O Estrangeiro
A QUEM MAIS AMAS, responde, homem
enigmático: a teu pai, tua mãe, tua irmã ou teu irmão?
- Não tenho pai, nem mãe, nem irmã,
nem irmão.
- Teus amigos?
- Eis uma palavra cujo sentido, para
mim, até hoje permanece obscuro.
- Tua pátria?
- Ignoro em que latitude está
situada.
- A beleza?
- Gostaria de amá-la, deusa imortal.
- O ouro?
- Detesto-o como detestais a Deus.
- Então! A que é que tu amas
excêntrico estrangeiro?
- Amo as nuvens... as nuvens que
passam... longe... lá muito longe... as maravilhosas nuvens!
AS FLORES DO MAL
( Les Fleurs du Mal )
Charles Baudelaire
Tradução,
introdução e notas de Ivan Junqueira
Edição bilíngue
656 Páginas
Editora Nova
Fronteira
Rio de
Janeiro
1985
PARAÍSOS ARTIFICIAIS
( Les Paradis Artificiels )
Charles Baudelaire
Tradução de
Alexandre Ribondi, Vera Nóbrega e Lúcia Nagib
Coleção
L&PM Pocket
Gênero:
Literatura
clássica internacional
Ensaios
224 Páginas
Porto Alegre
- RS
ISBN-10:
85.254.0858-1
ISBN-13:
978.85.254.0858-7
PEQUENOS POEMAS EM PROSA
( Le Spleen de Paris )
Charles Baudelaire
Tradução;
Aurélio Buarque
de Hollanda Ferreira
151 Páginas
Editora Nova
Fronteira
Rio de
Janeiro
1976
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