A Família do Pintor de Giorgio de Chirico
Conta as voltas da hélice do ventilador,
contempla o teto e ouve os barulhos da rua
Vai reconhecendo sua casa. Na
verdade, conhecendo, descobrindo. As gavetas dos armários, de cedro, perfumadas.
Os papéis acumulados em escrivaninhas, apesar da recomendação dela de jogar
logo fora. Há quantos anos não tiro nada das gavetas? Só coloco, coloco, coloco
e coloco. A memória de minha vida.
Que vida? Esta memória nunca
consultada que vai ser atirada ao lixo, assim que morrer. Que é nada na ordem
das coisas. Papéis, fotos, contas e anotações. Que importância têm? Documentos
do quê? De um homem comum. Ora, a história jamais se interessou pelo homem
comum. E por que havia de?
Lembranças. A ternura ressurge numa
foto em preto e branco a mão. E os galos ainda existem, porém continuam
cantando das 16 horas em diante. Vendo esse retrato sente-se só. Posto que se
dissesse isto aos seus amigos aqui, morreriam de rir. E o que parece, eles
encontrariam argumentos para lhe provar que a solidão está fora de lugar. Não
são tempos para ele. Diriam: Estamos todos sozinhos, ninguém reclama. Só o
senhor.
Pode ser, mas não tinha nada a ver
com os outros. A sua solidão sufoca e pesa. Pensa em outras coisas, olha a situação
à sua volta, não é possível ter mais sentimentos subjetivos. Imagina que diriam
isso, parece um homem prático, concreto em suas propostas. Bem, pura cogitação.
Entende, porque deseja eliminar as
lembranças. Alguma coisa ficou para trás, irrecuperável, e esta privação dói dentro
dele. Para eliminar o sofrimento, elimina-se a memória. Uma cirurgia
aparentemente simples, única solução. Só que não consegue, tudo é vivo dentro
de si. Agitado.
A imagem de sua mãe em alguma parte
do cérebro. Escondida no seu próprio medo. Cada dia que passava, ela se
assustava mais. Uma vez, chegou a pedir que não mudasse de Presidente Prudente,
que não se separasse dela. Não sabia explicar porquê, assim que fechava a porta,
de manhã, ela entrava em pânico.
Custa muito a se recompor. Fechava
as portas e janelas, passava trancas. Não era apenas pelo calor. As pessoas em
volta dela eram completamente estranhas, desconhecidas. “Vou às compras na
véspera de Natal e não vejo um só rosto familiar! Onde estão os nossos
vizinhos, amigos e parentes?” – dizia serena e com a voz calma e aveludada. Durante
certo tempo comentava a multidão que cresce, dia a dia, na cidade. Conversava,
tranquilamente, sem medo, sem refletir profundamente o que estava se passando.
Era uma constatação dos dias que corriam. Não se preocupava de onde tais
pessoas vinham, ou porque estavam vindo. Ou quem eram. As ruas iam se enchendo,
cada vez mais intransitáveis. Vieram os primeiros grandes problemas de circulação.
E de repente, os rostos, aqueles que via diariamente, quase que às mesmas
horas, em situações idênticas, passaram a desaparecer como se esvaíssem em
plena neblina. Sol escaldante, ar seco,
são sensações que os tomam, quando vislumbram a multidão, compacta, fechada,
mais fechada. Andam ombro a ombro, rosto a rosto, e ninguém se encarava.
Olhavam para os lados ou para o chão. Tais climas se espalham, como fluidos,
dominam a atmosfera. Tocam as pessoas, instalam-se nelas, com a umidade, o frio
e o calor. Dominam, simplesmente. Agora sabia. Nessas noites longas e
silenciosas são de aturdimento. Ficava na cama, com a boca fechada e conta as
voltas da hélice do ventilador, contempla o teto e ouve os barulhos da rua. Não
ousa nem mesmo olhar à janela. Se é ou não a síndrome do pânico. Puro medo.
Igual aos vizinhos das casas e dos prédios, da quadra.
Não ter com quem dividir esta
angústia deixava-o mais sozinho. É uma atitude egoísta, masoquista, ele sabe,
mas aceita aqueles fragmentos saudosistas. Mas não pode fazer nada, assim, sente-se
abraçado à sua fragilidade rancorosa. Houve um tempo, é esse antigamente, a
possibilidade de divisão. Dor e alegria eram repartidas, porque se vivia em
comunidade. Estavam juntos, podiam contar uns com os outros. E isto tornava
tudo mais fácil, suportável. Bastava abrir a porta, tocar campainhas, correr a
um portão, tocar um telefone, as pessoas se juntavam, partilhavam. Como
profetizou sua mãe, percebeu a perda de tudo isto bem antes do filho.
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