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Roda ao Redor III




A Família do Pintor de Giorgio de Chirico










Conta as voltas da hélice do ventilador,
contempla o teto e ouve os barulhos da rua













            Vai reconhecendo sua casa. Na verdade, conhecendo, descobrindo. As gavetas dos armários, de cedro, perfumadas. Os papéis acumulados em escrivaninhas, apesar da recomendação dela de jogar logo fora. Há quantos anos não tiro nada das gavetas? Só coloco, coloco, coloco e coloco. A memória de minha vida.
            Que vida? Esta memória nunca consultada que vai ser atirada ao lixo, assim que morrer. Que é nada na ordem das coisas. Papéis, fotos, contas e anotações. Que importância têm? Documentos do quê? De um homem comum. Ora, a história jamais se interessou pelo homem comum. E por que havia de?
            Lembranças. A ternura ressurge numa foto em preto e branco a mão. E os galos ainda existem, porém continuam cantando das 16 horas em diante. Vendo esse retrato sente-se só. Posto que se dissesse isto aos seus amigos aqui, morreriam de rir. E o que parece, eles encontrariam argumentos para lhe provar que a solidão está fora de lugar. Não são tempos para ele. Diriam: Estamos todos sozinhos, ninguém reclama. Só o senhor.
            Pode ser, mas não tinha nada a ver com os outros. A sua solidão sufoca e pesa. Pensa em outras coisas, olha a situação à sua volta, não é possível ter mais sentimentos subjetivos. Imagina que diriam isso, parece um homem prático, concreto em suas propostas. Bem, pura cogitação.
            Entende, porque deseja eliminar as lembranças. Alguma coisa ficou para trás, irrecuperável, e esta privação dói dentro dele. Para eliminar o sofrimento, elimina-se a memória. Uma cirurgia aparentemente simples, única solução. Só que não consegue, tudo é vivo dentro de si. Agitado.
            A imagem de sua mãe em alguma parte do cérebro. Escondida no seu próprio medo. Cada dia que passava, ela se assustava mais. Uma vez, chegou a pedir que não mudasse de Presidente Prudente, que não se separasse dela. Não sabia explicar porquê, assim que fechava a porta, de manhã, ela entrava em pânico.
            Custa muito a se recompor. Fechava as portas e janelas, passava trancas. Não era apenas pelo calor. As pessoas em volta dela eram completamente estranhas, desconhecidas. “Vou às compras na véspera de Natal e não vejo um só rosto familiar! Onde estão os nossos vizinhos, amigos e parentes?” – dizia serena e com a voz calma e aveludada. Durante certo tempo comentava a multidão que cresce, dia a dia, na cidade. Conversava, tranquilamente, sem medo, sem refletir profundamente o que estava se passando. Era uma constatação dos dias que corriam. Não se preocupava de onde tais pessoas vinham, ou porque estavam vindo. Ou quem eram. As ruas iam se enchendo, cada vez mais intransitáveis. Vieram os primeiros grandes problemas de circulação. E de repente, os rostos, aqueles que via diariamente, quase que às mesmas horas, em situações idênticas, passaram a desaparecer como se esvaíssem em plena neblina. Sol escaldante, ar seco, são sensações que os tomam, quando vislumbram a multidão, compacta, fechada, mais fechada. Andam ombro a ombro, rosto a rosto, e ninguém se encarava. Olhavam para os lados ou para o chão. Tais climas se espalham, como fluidos, dominam a atmosfera. Tocam as pessoas, instalam-se nelas, com a umidade, o frio e o calor. Dominam, simplesmente. Agora sabia. Nessas noites longas e silenciosas são de aturdimento. Ficava na cama, com a boca fechada e conta as voltas da hélice do ventilador, contempla o teto e ouve os barulhos da rua. Não ousa nem mesmo olhar à janela. Se é ou não a síndrome do pânico. Puro medo. Igual aos vizinhos das casas e dos prédios, da quadra.
            Não ter com quem dividir esta angústia deixava-o mais sozinho. É uma atitude egoísta, masoquista, ele sabe, mas aceita aqueles fragmentos saudosistas. Mas não pode fazer nada, assim, sente-se abraçado à sua fragilidade rancorosa. Houve um tempo, é esse antigamente, a possibilidade de divisão. Dor e alegria eram repartidas, porque se vivia em comunidade. Estavam juntos, podiam contar uns com os outros. E isto tornava tudo mais fácil, suportável. Bastava abrir a porta, tocar campainhas, correr a um portão, tocar um telefone, as pessoas se juntavam, partilhavam. Como profetizou sua mãe, percebeu a perda de tudo isto bem antes do filho.










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