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Um Clarão nos Olhos de Ressaca















            Na noite de autógrafos, em que a muito custo tento equilibrar todos os motivos de agir e de cruzar os braços e pernas, de insistir e agitar-me, fico quieto, neutro e entrelaçado no bate-papo digestivo - foi então que aconteceu.
            Eu conversava ansioso e com desejo - no fundo do coração a esperança humilde como ave doméstica - eu me balançava como uma onda que vem e vai, e já teve noites de tormenta e madrugadas de seda, e dias vividos com todos os nervos e com toda a alma, e charnecas de tédio atravessadas com a longa paciência dos pobres - como um homem que quer se integrar a alguma cidade, um estrangeiro, e me sentia naquele diálogo como aquele que se vê nos cartões-postais, de longe, dobrando uma esquina – trafegava, portanto, extremamente sem importância, mas tendo em mim a força da renovação e na linha de um novo horizonte, uma paisagem marinha para repousar a alma.
            Na medida da via, como um homem de vinte e nove anos, que dispõe de regular saúde - e que cessou de fazer planos gratuitos para a vida, mas ainda não começou a levar em conta a faina da própria morte – quando aconteceu. Foi apenas em rápidos papos de SMS de celular, antes de se abrir um sinal numa esquina, dentro de uma sala, distribui-se poucos lampejos de flashs. No foco, uma figura de mulher que nesse instante me fitou e sorriu discretamente com seus pequenos olhos, negros como uma jabuticaba límpida e a boca fresca e viva de batom rosa discreto; que depois ainda moveu de leve os lábios. Ela olhando-me perguntou abrindo um leve sorriso agradável, como se fosse uma menina presenteando uma flor: - De qual conto e livro, de minha autoria, que você gostou?
            Naquele momento fiquei perplexo diante da figura que acredito ser uma das maiores expressões da nossa literatura. Na condição de iniciante, além de fã incondicional, respondi de modo tímido, como que um discípulo diante de uma mestra: - Aprecio a história As Formigas incluída na antologia Mistérios.
            Houve uma conexão, como se, em frequência modulada no rádio, magnetizados no clarão dos céus dos olhos, eu visse um portal se abrir sobre uma paisagem úmida e brilhante de luz, de estrelas, nuvens e chuva. Com o vento agitando árvores e derrubando flores, e o mar cantando ao sol. Olhei fascinado o mar evaporando de emoção, naquela noite, dos olhos de Lygia Fagundes Telles.









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