Pular para o conteúdo principal

Um Homem Foge do Espelho












“Pelo gosto de caqui verde na boca,
soube que a casa era o calabouço.
Ele soltou o primeiro botão da camisa,
a dor igual a um grão de sal na garganta.
Colou com a baba os rótulos na mesa,
os olhos vermelhos de tanto cortar.”












            Era uma noite de verão quente e seca, como todo dia de semana, o movimento do bar é regular. Ulisses entra. Sentou-se à mesa do fundo, o velho trouxe a garrafa. Enquanto não acabasse o dinheiro (ficava tomando cerveja uma atrás da outra), o velho não deixava faltar cortesia. Ele trazia um talão de cheques no bolso e com os dedos colava os rótulos das garrafas na mesa.
            Vislumbrava a paisagem noturna e dava um gole. Erguia numa careta o copo e espremendo os olhos engolia seco. Abrindo a vista, enxerga no relógio da parede as horas. Por trás do balcão, o velho apoiava o corpo em cima dos braços e colocava o queixo por cima das mãos. Ao lado, uma porção de petiscos em saquinhos com manchas esverdeadas de bolor. O velho esfregava no balcão um pano encardido de hora em hora. Quando Ulisses abriu a camisa e os braços como se fossem asas, deu a volta no balcão, contou as garrafas, chegou à mesa, pediu licença, encheu o copo e tirou os círculos úmidos naquele trapo.
            Podia ouvir uma música em FM. Ulisses não gosta de bar sem rádio. Nunca tinha frequentado aquele lugar, seria um prazer a mais... Espreitava a paisagem noturna antes de emborcar outro trago. Adora o silêncio de poder estar só à mesa, sem o alvoroço de colegas aos gritos estridentes e risos impulsivos. O banheiro era uma alcova escura. A primeira entrada logo que se atravessa a porta. Cada vasilhame acabado, ali entrava, não sentia o odor familiar de desinfetante de pinho, saía rápido. Olhar de peixe, a face em transe, bebendo sem medida. O único bar sem a marcação dos garçons, costurando entre as mesas, sem a tática da gorjeta, para morder a língua e esvaziar o bolso.
            Ulisses aprecia ficar no cheiro azul dos cigarros e no alarido das vozes. A casa, a esposa, abelhas pinicando a cabeça, quer o bar, colando nas mesas os rótulos das garrafas. Naquele antro, é o dono da mesa, teria bebida em fartura e nem voz de mulher, que a língua é uma faca no coração: - “Não ponha álcool na boca, homem, pelo amor de Nosso Senhor. Essa é a água do Satanás, quando abrir os olhos estará arrastando no chão!” Com gesto de desconsolo, Ulisses não responde. A mesma cena se repete com a mãe toda a semana: - Por que você bebe, meu filho? Seu pai não morreu do coração. Sem tremer a agulha de crochê, a doce velhinha murmura a canção de ninar para o seu menino: - Seu pai cachorro de rua e ordinário, se matou com um tiro na boca. No quarto de hotel, ao lado daquela vagabunda.
            O medo jamais o habitara, pelas revelações malditas da esposa. Assim, o bar é uma estrela guia, um sopro de vida. Sem regras, sem limitações, sem jogo e, principalmente, não tinha espelho. Ali se sentia livre.
            Estava na hora de fechar, o velho ergueu o queixo, o peito do balcão, parou de rabiscar um caderno brochura amarelo, colocou a caneta na orelha e, sem olhar para as pessoas, somou o caixa. O homem levantou-se, contornou devagar por entre sua mesa, assim não fosse hora de sair do canto. Tentou desviar os olhos do relógio na parede. O velho retirou do corpo, o guarda-pó sujo e, bruscamente, desliga o rádio. Pela rápida passagem das horas, por um triz, Ulisses é feliz no bar. É hora de ir para casa: a mão treme ao erguer o último copo. Parecia acordar após um grande descanso, olhos semicerrados. Foi pagar a conta com quem perdeu o último ônibus. Pelo gosto de caqui verde na boca, soube que a casa era o calabouço. Ele soltou o primeiro botão da camisa, a dor igual a um grão de sal na garganta. Colou com a baba os rótulos na mesa, os olhos vermelhos de tanto cortar.
            Sai toda gente, cada uma com suas asas das fantasias, como vampiros da noite. À sombra dos postes, cambaleia na avenida de asfalto. Um cão uiva para a lua, perdido entre as construções de tijolo, muros e grades altas em forma de lança, da selva sanguinária. Ulisses perdeu a guia das graças na travessia do mar de concreto. Ouve apenas o canto das sereias mutantes de néon nos labirintos e becos. Solitário cambaleia pela rua escura. Olha o corredor polonês de mocinhas, montadas de peruca loira, botinha preta e com a língua vermelha dardejante. Por mais que se enverede, algum timoneiro dos bêbados o guia a mudar sua rota de navegação.
            A cada passo, Ulisses sentia os pés como num abismo de areia movediça. São 22 horas. Por estar bêbado, não podia andar a noite inteira. Os pés não suportavam o peso de chumbo. Era hora de ir para casa. As pessoas foram embora. Cospe na sarjeta a saliva pegajosa com sabor de caqui verde, o fio espumante no canto da boca: - Já tomei a cota de hoje. Estou mais do que certo, vou esquecer o dia.
            Não podia olhar a fonte luminosa - no fundo azedo das entranhas floresce o cacto vermelho: Ter laços com alguma pessoa ou coisa, tomar o café com vidro moído, saborear o bolo com veneno de rato que lhe traz a sogra na poltrona da sala, a noiva tecerá com as mãos um bordado e, aos domingos, as pessoas na cozinha falam em subir no topo da colina verde... até que o carretel de costura não role dos dedos e a cabeça tombe para sempre...
            Sentado na borda, distrai-se o Ulisses a ouvir lamúria na escuridão. Assovia a música que brota nos postes. Há muitas luas, os malditos olhos brancos sempre acesos nos postes. O homem de costas para o espelho d´água na fonte.








Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O PAU

pau-brasil em foto de Felipe Coelho Minha gente, não é de hoje que o dinheiro chama-se Pau, no Brasil. Você pergunta um preço e logo dizem dez paus. Cento e vinte mil paus. Dois milhões de paus! Estaríamos assim, senhor ministro, facilitando a dificuldade de que a nova moeda vai trazer. Nosso dinheiro sempre se traduziu em paus e, então, não custa nada oficializar o Pau. Nos cheques também: cento e oitenta e cinco mil e duzentos paus. Evidente que as mulheres vão logo reclamar desta solução machista (na opinião delas). Calma, meninas, falta o centavo. Poderíamos chamar o centavo de Seio. Você poderia fazer uma compra e fazer o cheque: duzentos e quarenta paus e sessenta e nove seios. Esta imagem povoa a imaginação erótica-maliciosa, não acha? Sessenta e nove seios bem redondinhos, você, meu chapa, não vê a hora de encher a mão! Isto tudo facilitaria muito a vida dos futuros ministros da economia quando daqui a alguns anos, inevitavelmente, terão que cortar dois zeros (podemos d

Trechos de Lavoura Arcaica

Raduan Nassar no relançamento do livro em 2005 Imagem: revista Usina             “Na modorra das tardes vadias da fazenda, era num sítio, lá no bosque, que eu escapava aos olhos apreensivos da família. Amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma, vergada ao peso de um botão vermelho. Não eram duendes aqueles troncos todos ao meu redor velando em silêncio e cheios de paciência o meu sono adolescente? Que urnas tão antigas eram essas liberando as vozes protetoras que me chamavam da varanda?” (...)             “De que adiantavam aqueles gritos se mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera? Meu sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um pomo. E me lembrei que a gente sempre ouvia nos sermões do pai que os olhos são a candeia do corpo. E, se eles er

O Visionário Murilo Mendes

Retrato de Murilo Mendes (1951) de Flávio de Carvalho Hoje completaram-se 38 anos de seu falecimento Murilo Mendes, uma das mais interessantes e controvertidas figuras do mundo literário brasileiro, um poeta difícil e, por isso mesmo, pouco divulgado. Tinha uma personalidade desconcertante, sua vida também constitui uma obra de arte, cheia de passagens curiosas de acontecimentos inusitados, que amava Wolfgang Amadeus Mozart e ouvia suas músicas de joelhos, na mais completa ascese mística, não permitindo que os mais íntimos se acercassem dele nessas ocasiões. Certa vez, telegrafou para Adolph Hitler protestando em nome de Mozart contra o bombardeio em Salzburgo. Sua fixação contemplativa por janelas foi assunto do cronista Rubem Braga. Em 1910, presenciou a passagem do cometa Halley. Sete anos depois, fugiu do internato para assistir ao brilho de outro cometa: Nijinski, o bailarino. Em ambos os casos sentiu-se tocado pela poesia. “Na