Um estilo autêntico de atender o público consumidor
Em
meio ao fluxo de carros, motos e transeuntes, a mulher corre seus olhos atenta
como um lince. Dentro deste semblante felino vive a guerreira experiente,
protegida pelo escudo da seriedade contra as armadilhas do cotidiano, de exclusões,
do desprezo, de ofensas verbais, decorrentes do preconceito. Mas, no decorrer
da vida, Cristina possui um quintal dentro de sua alma, apesar do desrespeito
por grande parte da sociedade.
As
flores de pétalas vermelhas projetam a vida plena e radiante que habita o seu
jardim interior, estampado na camiseta que usa. Mesmo no baile de máscaras de
Presidente Prudente, Cristina ou simplesmente “Tina”, desempenha seu papel
neste espetáculo, de forma corajosa, de olhar fixo, penetrante, de comunicação
clara e objetiva
A
cena tem algo descontraído como nas margens de uma represa. Usando uma camiseta
verde musgo que destaca as flores de pétalas vermelhas, sem maquiagem e cílios
postiços, Cristina, se acomoda, toda majestosa, na cadeira de bar posicionada à
Rua Francisco Goulart. Usando tênis cor de vinho, cabelos compridos tingidos de
branco. No início, desconfiou da abordagem e, de modo incisivo alertou-me: “-
Se for entrevista para um informativo de alguma igreja ou seita, aviso que não
compactuo neste estratagema de propagar as mazelas do povo associando ao
Apocalipse da Bíblia!” Após explicar o motivo do bate-papo refestelou-se
tranquila na cadeira, segurando na mão esquerda um jornal opinativo mensal, e
cruza as pernas.
Ela
viveu o período do auge da profissão até 1999. Juntando o que conseguiu
economizar comprou uma casa nas imediações da Vila São Jorge. Ainda com o
capital que juntou, investiu no curso de assistência e de técnica de Enfermagem
para sua filha. Percebeu as mudanças econômicas, de comportamento e a decadência
da prostituição, observando as colegas saírem das boates migrando de Londrina e
irem para as calçadas do centro (no eixo entre as ruas Rui Barbosa, Barão do
Rio Branco, Dr. Gurgel, José Foz e Felício Tarabay) e nas imediações do
terminal urbano e Rodoviária. Isto, por uma temporada, entretanto, as mais
novas e bonitas foram para única boate de strip-tease.
“Durante
a pandemia (Covid-19), o giro de clientes e o faturamento eram altos, porém,
desde o começo do governo Lula ocorreu uma queda vertiginosa”. – diz Cristina,
de forma incisiva. Ressalta que faz, esporadicamente, a ponte aérea entre
Presidente Prudente e Londrina, no Estado do Paraná, para suprir algumas
necessidades básicas, a exemplo dos medicamentos que o neto necessita. Seus
fregueses vão desde 18 até 70 anos, independentes de cor, de raça, de credo e
de condição social e econômica.
Aposentou-se
aos 65 anos, por idade e, como complemento financeiro, Tina resolveu partir
para a batalha na calçada até às 17 horas, proximidades de uma garagem de uma
rede de supermercados, nos arredores do Terminal Rodoviário Comendador José
Lemes Soares, na Vila Nova. A partir das 19 horas atende seus clientes
selecionados em sua residência.
Há
algum tempo, ela cuida de um neto, acometido de leve Transtorno de Espectro
Autista (TEA), sendo o valor da consulta por especialista de R$ 500,00, dentro
de suas parcas condições Tina pode apenas contribuir com a quantia de R$ 700,00.
Entretanto, Cristina se exalta ao declarar que o auxílio doença no valor de R$
1.400,00 foi extinto quando o atual presidente do Brasil assumiu o cargo.
Cristina
argumenta que a sua geração proporcionava a satisfação em todos os aspectos aos
homens, desde servir uma bebida, atuando como psicólogas, ouvindo os seus
desabafos, as suas angústias e até dando conselhos conjugais. Mas, sempre
mantendo a ética e os segredos da profissão. Por outro lado, muitos homens
nunca são tão amáveis como quando estão com uma puta.
“Na
atualidade, as garotas de programa não conseguem juntar dinheiro para garantir
uma velhice equilibrada e saudável: uma casa própria, uma alimentação
balanceada, entre outras coisas. Percebi nelas um tratamento muito formal,
distante e calculista com os fregueses, que atendem, geralmente, em casas
alugadas. Através de horas de atendimento, apenas cumprem as tarefas
fundamentais, em decorrência da mudança de comportamento das mulheres do tipo
“família”. Elas se caracterizam pela determinação, pelos relacionamentos curtos
e, principalmente, priorizam a estabilidade aliada a independência financeira,
além da concretização dos projetos pessoais. Diante das batalhas e conquistas, é
óbvio, o segundo sexo mudou.” – finaliza Cristina.
Luta
por cidadania
Enquanto poucos imóveis das décadas de 20, 30, 40 e 50 de Presidente Prudente e do Brasil vão sendo aos poucos sorvidos pela especulação imobiliária, apagando da história as referências, assim comprometendo a memória cultural, a identidade e o patrimônio físico, um tema persiste em se manter: o problema social da prostituição. Na realidade, uma discussão que atravessa séculos, não só da sociedade brasileira. Os historiadores falam da questão desde a Roma antiga, passando pela Idade Média, Moderna, chegando aos nossos dias.
Nas
artes, desde a pintura, passando pela literatura, pelo cinema até a música
popular brasileira e internacional, as mulheres da vida protagonizam as telas
de Henri de Toulouse-Lautrec, na
cortesã realista por excelência, principal destaque do livro “Naná”, de Emile Zola, um clássico do erotismo
mundial, transformou-se em personagem eterna. Uma das primeiras mulheres, num
romance, a se assumir dona de seu próprio corpo – usando-o para romper
barreiras ou simplesmente por prazer. Só o gênio de Emile Zola – o inventor do romance naturalista – poderia ter criado
uma fêmea como Naná, em pleno século XIX. Relida hoje (em livre adaptação) é
fácil entender porque a cortesã abalou tanto a Europa de mais de cem anos
atrás.
Elas
expõem os seus corpos inteiros nos roteiros cinematográficos como “Mamma Roma”,
de Pier Paolo Pasolini, “Noites de
Cabíria”, de Federico Fellini,
“Mulheres da noite”, de Kenji Mizoguchi,
“Mulher-objeto”, de Rainer Wainer
Fassbinder, entre outros diretores de filmes. É comum encontrar em filmes
que retratam as décadas de 30 e 40 e, principalmente nos westerns (faroestes),
a reprodução de bordéis que existiam na época.
A
prostituição, no entanto, é um tema desafiador, daqueles que resistem a
qualquer simplificação. Cindiu até mesmo o movimento feminista, fraturado em
duas bandas. De um lado, ficaram as abolicionistas, militantes convencidas de
que a atividade serve aos interesses patriarcais porque transforma o corpo da
mulher em objeto e as submete a várias formas de violência. De outro, puseram-se
as que defendem que é uma profissão como outra qualquer, que integra o direito
de escolha das mulheres. Essa segunda linha, chamada pró-sexo, refuta o lugar
de vítima para as prostitutas. E ganhou um punhado de representantes, quase
sempre atrevidas e irreverentes, pelo mundo afora.
Defendidas
por humanistas, por alguns padres pertencentes a ala progressista da igreja
católica, combatidas por setores ultraconservadores, a questão da prostituição
no Brasil nunca foi colocada na plataforma da grande maioria dos políticos,
afirma a socióloga Gabriela Leite, fundadora da Ong Davida e autora do livro
“Filha, mãe, avó e puta”, no início de 2009. Conhecida e respeitada por falar o
que pensa, Leite, a porta-voz das prostitutas, desvela os tabus que aguçam o imaginário
coletivo em torno de uma das profissões mais antigas da humanidade. A socióloga
pensa a prostituição enquanto profissão e como tal levanta as questões
relacionadas aos direitos e deveres das empregadas e empregadores.
Do
ponto de vista sociológico, prossegue Leite, grande parte da sociedade encobre
o problema e ainda permeia o medo, a hipocrisia e, acima de tudo o interesse de
grupos corporativos e políticos. Tal quadro impede que o tema seja tratado com
“sensibilidade, responsabilidade e, no entanto, somente a pressão da população,
a promoção de políticas públicas para a categoria. Na sequência, romper os
estereótipos promovendo a cidadania das prostitutas, obter o reconhecimento
legal da profissão. Conquistar melhores condições de trabalho e qualidade de
vida para as profissionais do sexo, dentre outras iniciativas. Tida como única
forma da reivindicação para entrar na agenda nacional, como alguns países
europeus fizeram no final do século passado, entende ela.
Presidente
Prudente já foi povoada por essas casas de prostituição, mas logo, a única
maneira de vê-las será mesmo na internet. O modelo tradicional de bordel está
quase que totalmente extinto nesta cidade, dando lugar as casas de encontro
(intituladas “repúblicas” de fachada) e apenas uma boate onde as prostitutas
trabalham. A boate se autodenomina “casa de shows”, mas o único espetáculo se
mostra no “strip-tease” feito pelas mulheres que tiram a roupa dublando alguma
música de fundo. É claro que nem todas são garotas de programa, mas outras usam
o número dançante como um “disfarce.”
Essas
mulheres colocam banners em sites de
namoro e, até 2016, pagavam anúncios na página de classificados do único diário
impresso local, prestando serviços como “massagistas”. Todos esses modelos de
venda do sexo demonstram uma modernização desta profissão milenar, mas sem o
charme e o romantismo da casa da Norma, na “zona do meretrício”, na Vila dos
Eucaliptos, que faz parte da história de Presidente Prudente, entre outras
cidades.
Deixam
também as suas impressões nos livros “Teresa
Batista cansada de guerra”, “Tieta do agreste”, “Gabriela, cravo e canela”, do escritor baiano Jorge Amado, “O enterro da cafetina”, de Marcos Rey, “Lúcia McCartney”, de Rubem Fonseca, “Dinorá, moça do prazer, conto que
integra o livro “Cemitério de elefantes”,
de Dalton Trevisan, além de outros autores brasileiros.
Uma
vida, por melhor que seja, sempre será composta pelos elementos básicos:
bancos, caixas eletrônicos, supermercados, UBS´s, UPA´s, farmácias, igrejas,
delegacias e prostituição. Saí durante o dia para percorrer as ruas e pontos
tradicionais e mais recentes, começando entre os eixos das ruas José Foz,
Felício Tarabay e Francisco Goulart, nas imediações do terminal urbano, na rua
lateral da construção onde havia a conhecida “Farmácia Tóquio”, esquina com a
Avenida Brasil e indo até a rotatória do Cristo, nas proximidades do Jardim
Monte Alto.
Os
motivos que levam as meninas a praticarem esse tipo de atividade são os mais
variados. Algumas seguem uma tradição alcançando a terceira ou quarta geração
de prostitutas na família. Amanda, por exemplo, tem 19 anos, faz ponto num
barzinho há quatro meses. Era casada desde os 16 anos, separou-se e não tinha
onde morar, nem dinheiro para pagar as contas. Convidada por uma prima que já
estava na área e trabalha no mesmo ponto, Amanda resolveu aceitar para ganhar
algum para a sua subsistência.
A
maioria dos casos são de moças que vem dos arredores de Presidente Prudente,
com a intenção de tentar uma vida nova e melhor, não encontrando nada,
consequentemente, acabam aceitando trabalhar nas ruas ou na boate, onde têm o
que comer, dormir e ainda obtém um retorno financeiro. Existem também as que
fazem por necessidade, uma outra minoria gostam por prazer.
Foi
numa república no Jardim Bongiovani, que surgiu a monumental Jennifer, em 2018, que com seus dotes e
medidas perfeitas dividia com Ane Kiss
o título de a melhor da cidade, na opinião dos conhecedores. No ano seguinte,
Jennifer foi trabalhar na única boate sobrevivente próxima a uma fábrica de
refrigerantes, onde fez muito sucesso. Alguns meses depois ela se casou,
deixando dezenas de fãs desamparados. Dias depois da notícia se espalhar,
apareceram frases desesperadas pichadas nos muros próximos à boate, como “Ah, Jennifer... Por quê?”
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