Um dramático perfil com tamanha
angústia, que representa uma geração
dilacerada, na tristura e no desencanto
“Que esfinge de cimento e alumínio lhes
rebentou os crânios
e lhes devorou os cérebros e a imaginação?”
Hawl (Uivo), de Allen Ginsberg
Aos 15 anos – disse Peri, começando a
sua história – eu não pensava em quase nada importante. Vivia, acho, como todo
rapaz desta idade. Estava começando a fumar, porque o cigarro me dava segurança,
aos sábados e domingos ia num outro barzinho, bebia cerveja, contava mentiras
sobre minha vida sexual.
O balcão do bar próximo a rodoviária (Terminal
Rodoviário Comendador José Lemes Soares), tendo quatro frequentadores
semi-embriagados, não era bem o ambiente propício para tal conversa. Mas era
ali, no meio daquela balbúrdia, que Peri começava a contar-me sua via crucis
passada: o roteiro às vezes cômico, mas quase sempre amargo, de suas
frustrações.
Muito cedo ele se descobriu meio
sozinho no mundo, embora morando com a família em Álvares Machado. Não que o
pai fosse completamente irresponsável, mas era um sujeito, na opinião de Peri mesmo
diz, “fora do convencional”: mulherengo, de espírito aventureiro,
individualista e extremamente desorganizado. Por causa disso, desde a separação
dos pais – a mãe casara-se outra vez, com um policial -, Peri e seus dois
irmãos mais novos andavam um pouco aos deus-dará.
- Foi uma coisa estranha. Os velhos se
separaram e não houve assim aquela coisa de brigar pelos filhos. Ficamos
sozinhos, andando de um lado para o outro. Ninguém dava muita importância ao
que a gente fazia. – confessa Peri.
“Eu acho que os adultos pouco estão
ligando para gente como nós. Sei que gente como nós somos inúteis e invisíveis,
que a maioria dos jovens é obediente aos pais e coisa assim – não é assim que
se fala? -, gente que estuda, gente que diz sim, sim, tudo bem. Mas eu sinto
que, no fundo do coração, esses carinhas e essas meninas acham que estão
vivendo uma vida besta. É uma gente alienada, sacou?
Grande parte dos jovens entre 15 e 24
anos são conformistas, desinformados, quase apáticos. A maioria também forma no
outro lado, no exército dos “rebeldes”. Uma rebeldia desorientada, sem objetivos
definidos – a rebeldia, parece, de quem está perdido e não sabe o que fazer da
própria vida. Seria rebelde um jovem que se droga habitualmente, que se
embriaga, corroendo-se fisicamente, destruindo-se em plena juventude, sem
qualquer agressão real à sociedade? Como uma espécie de mudo, silencioso suicídio?
“- A
gente é como um rebanho. É mais ou menos isso o que somos. Às vezes, ingênuos e
puros: acreditamos em quase tudo o que nos dizem, até a desilusão”
Mas o processo é rápido e contínuo:
ali, no balcão do bar, diante de Peri e cercado de três adolescentes embriagados
e semidrogados tentava ouvir mais um depoimento amargo, ressentido e, às vezes,
meio trágico. Peri insistia, na sua aparente desilusão com sua própria gente –
os jovens que o cercavam, e que asperamente criticava -, em lembrar,
obsessivamente, os versos de Belchior: “Nossos
ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam não. Você diz que depois
não apareceu mais ninguém, e hoje eu sei que quem me deu a idéia de uma nova
consciência e juventude está em casa guardado por Deus, contando o vil metal. Minha
dor é perceber que, apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os
mesmos, e vivemos como os nossos pais”.
- Como os nossos pais. Eu gosto muito
dessa música aí, é uma coisa meio amarga, mas é o que eu sinto hoje, lembrando
tudo aquilo. A gente quando é muito verde vive de cantar canções dessa gente,
de traçar nosso destino com o que um cantor ou outro diz. – murmurou Peri.
Baixa a cabeça, olha para as unhas meio
sujas e, com um pouco de desalento, suspira: “- A gente é como um rebanho. É mais
ou menos isso o que somos. Às vezes, ingênuos e puros: acreditamos em quase
tudo o que nos dizem, até a desilusão e sairmos por aí se drogando ou se
omitindo sobre as questões sociais: moral, religião, trabalho, estudos, vida e
morte. Pouca coisa parece importar: andamos sem rumo. Ou somos conduzidos.”
Morara em Álvares Machado, em 1978, já
com 17 anos, quase 18, Peri – que já fumava maconha desde os 15 – tomou pela
primeira vez uma bolinha com álcool: Minorex, um estimulante comprado na farmácia.
Ficou muito agitado. Eram ainda os tempos da onda disco e, nas pistas de dança
da moda, ele ganhava concursos, John Travolta do subúrbio.
O mundo começava a se tornar mais amplo
e largo. Peri queria descobrir as coisas. Começou a interessar-se por arte,
poesia e filosofia. Leu um romance que o deixou impressionado, “O homem dos dados”, de Luke Rinechart:
a história de um psicanalista em crise, para quem a vida não tem lógica e segue
ao correr do acaso, criando para si um mundo desordenado, anárquico.
Tão curioso quanto desorientado diante
da complexidade de um mundo que não compreendia, busca na droga e nas leituras
desordenadas uma chave para a percepção da realidade. No início, acreditou que
poderia chegar ao nirvana, como os orientais. A palavra “sabedoria” passou a
ter para ele um sentido mágico, e era com ela que se inebriava, todas as
noites, no miserável quarto dos fundos de uma casa na zona leste. Seu pai,
agora dono de um bar e na companhia de seus dois irmãos mais novos. Quase não
via a mãe, que morava então em Presidente Prudente.
Sonho, ilusão e mentira
Decora frases feitas, e, a elas,
acrescentava pensamentos
de Nietzsche e Carlos Castañeda
Os “registros arcaicos”, nos quais
deveriam estar escritos os destinos passados, presentes e futuros da
humanidade, queimavam seu cérebro como uma obsessão. Ser sábio. Resistir à dor.
Dominar a “terceira visão”. Tudo era possível, pela meditação profunda. Encantado
com o feiticeiro don Juan, o mago de uma tribo mexicana que Carlos Castañeda retratou
em livros como “A erva do diabo”, “Portas
para o infinito”, “Uma estranha realidade” e “Viagem a Ixtlan, Peri vivia num mundo fantasmagórico e nebuloso, entre chás,
infusões secretas e visões oníricas.
Depois, outra decepção: Castañeda se
tornara com seus livros, um homem extraordinariamente rico. Na percepção de
Peri, que às vezes não se alimentava bem e que se privava de coisas
fundamentais para comprar, por exemplo, seus habituais cigarros de maconha,
Castañeda passou a ser um simples comerciante de livros e ideias insinceras,
arguto vendedor de sonhos, ilusões. “Então comecei a engendrar complexas e
confusas teorias sobre as engrenagens do mundo. Lobsang Rampa, Carlos Castañeda,
os padres católicos, os políticos – um bando de charlatães.
Mas não deixou a droga – pelo contrário.
À maconha, acrescentou comprimidos de Optalidon e a filosofia clássica. Tomava cinco
bolinhas com cerveja e lia Platão, Aristóteles, biografias de filósofos.
“A filosofia clássica falava muito da
natureza.” E por isso fiquei, logo de início, encantado. Descobri na “República”, de Platão, a idéia de um estado
ideal, baseado no conceito de justiça. Confuso, comparava o resultado de minhas
leituras com a realidade: se o Estado justo podia ser construído, e as coisas
eram, nos livros, tão claras, por que a sociedade era imperfeita? – lembra Peri.
Eram estas as perguntas que se fazia
quando, de manhã, amargurado com um vazio no estômago, deprimido e nervoso
depois do efeito das drogas, sentia-se desprezível e sujo. O excesso de Optalidon
estava destruindo seus dentes. Sentia-se, todas as manhãs, extremamente
cansado.
Sozinho, não tinha com quem conversar.
Percebera que seus companheiros quase não conversavam, também, com os mais
velhos – viviam isolados, em bandos. Mas também com eles não tinha diálogo: pareciam
tolos e vazios.
Estranhavam o interesse dele por filosofia, jornais e respondiam sempre:
- Dá um tempo aí, cara. Chega mais, vamos beber um gole
aí e curtir um som “massa.”
Foi nesse tempo que Peri começou a
preocupar-se também com a saúde. Olhava-se no espelho, via os dentes
amarelando, as olheiras profundas e, intimamente, tinha medo de morrer. Um dia,
um de seus amigos coçou o nariz com a ponta do dedo e retirou-o com uma mancha
de sangue coagulado. Peri olhou fixamente para aquele círculo sangrento no dedo
do amigo e quase teve vômitos: o nariz dele estava apodrecendo. Um buraco
crescia diariamente, quase transformando o septo nasal numa só cavidade.
Afastou-se, pouco a pouco, daquele
mundo de drogas excessivas, sexo, música e loucuras. Um dia, por acaso,
caiu-lhe às mãos um exemplar de “Assim falou
Zaratustra”, de Nietzsche. Ficou fascinado. Andava pelas ruas, à noite,
declamando frases inteiras do livro. Parava os passantes e gritava: “Somos ratos,
mas seremos super-homens”. Pensou que estava enlouquecendo: algo, dentro dele,
mudava. Leu desenfreadamente, “Aurora”,
“O crepúsculo dos ídolos”, “O anti-Cristo” e, finalmente, “Ecce Homo.”
“Faze o que queres”, gritava Peri pelas
ruas, assustando homens de gravata que se dirigiam para o trabalho, mães
puxando os filhos, escriturários, faxineiros e vagabundos.
- A vida é dolorosa e sem sentido. Não
tem finalidade. Mas estamos vivos, e devemos vivê-la não apenas como nos foi
dado viver, mas como quisermos, livres. Decorei essas frases feitas. E, a elas,
acrescentava sempre, citando meu filósofo preferido: “O homem real tem mais
valor que o homem ideal, feito de sonho, peste e mentiras.” Ou: “O homem livre
é imoral porque em todas as coisas quer depender de si mesmo e não de uma tradição
estabelecida.”
A procura de sentido na vida
Ele expõe suas frustrações, suas
esperanças,
seus anseios de independência e
liberdade
Peri passou a procurar, nos jornais, as
notícias do seu mundo real. Interessou-se por política, mas era difícil, para
ele, encontrar entre os companheiros de sua idade parceiros para o diálogo e a
discussão: quase todos os seus amigos eram desinformados e desinteressados da
realidade. Estranhavam o interesse dele por filosofia, jornais e respondiam sempre:
- Dá um tempo aí, cara. Chega mais, vamos beber um gole aí e curtir um som
“massa.”
Cantavam canções medíocres como se
cantassem cantigas de roda – inofensivamente. Peri se irritava. Aos que o
chamavam de louco, respondia
com textos de Nietzsche: - Em quase todos os
caminhos, é a loucura que aplaina o terreno para as novas idéias.
Aos que lhe diziam “sempre foi assim”,
retrucava: - Dir-se-ia ter sido a imaginação extravagante dos carcereiros e dos
verdugos o que até aqui tem dirigido a educação da humanidade.
Aos que falavam de Deus e cristianismo,
gritava: - Por que haveria de existir para uma pequena estrela qualquer e ainda
para uma pequena espécie nessa estrela uma exceção a esse espetáculo eterno? Fora
com tais sentimentalismos!
- Achei, então, que devia me libertar daquele
mundo que me prendia lembra Peri sonhadoramente. Hoje, aos 45 anos, ele já tem
pequenas rugas ao redor dos olhos. Está sempre rindo, bem humorado, tolerante,
às vezes, até um pouco conformista. Aceita que cada um fique “na sua”, ainda que
isto signifique uma postura, ou atitude moral e eticamente condenável. Meio
anarquista.
De graça, só para as meninas que, sem
dinheiro,
iam para a cama com ele em troca dos
cigarros.
Libertar-se de um mundo limitado,
estreito, interiorano, significava ir para a capital do Estado e, a partir
dessa base metropolitana, correr outros lugares, conhecer outros espaços,
experimentar novas realidades. Antes, porém, de mudar-se para São Paulo – onde
trabalharia numa financeira -, andou por quase todo norte de Minas Gerais, de
caminhão. De carona em carona, conheceu os trabalhadores do campo, a miséria
maior que toda aquela à qual já estava acostumado, o mundo violento, brutal,
dos postos e hospedarias à beira das estradas.
De madrugada, pelas rodovias chutava
latas e pedras das vias, a cabeça doendo de ressaca, dúvidas sobre que caminho
tomar, sobre se seria fácil uma carona, essas coisas práticas, tentando afastar
do pensamento o amargor da desilusão. A vida real não coincidia com a colorida
doçura dos seus sonhos.
- Bem, então eu fui para São Paulo,
consegui um emprego no Departamento de Pessoal de uma financeira e ali fiz
amizade com E., um de meus melhores amigos até hoje, homossexual e viciado em
drogas. Em todo tipo de drogas: maconha, “pico”, bolinha, heroína, cocaína,
éter, tudo. Uma noite saímos juntos, fomos a uma festa, e no fim ficamos lá
apenas eu, ele e outro cara. Aí, ele enrolou um “fininho” e desde então eu
passei a fumar maconha quase todos os dias.
Peri começou a perceber que, quanto mais
se drogava, mais seus companheiros fugiam das responsabilidades. E, se
criticavam a sociedade em que viviam, nada pensavam em fazer para modificá-la. Pouco
a pouco, foi deixando as drogas. A maconha começou a sobrar em suas mãos – e
ele descobriu que podia ganhar um bom dinheiro vendendo-a para os companheiros
da escola. Antes, ele a repartia com eles, amigavelmente. Agora, passou a
cobrar pelos “baseados.” De graça, só para as meninas que, sem dinheiro, iam
para a cama com ele em troca dos cigarros.
Comprar e vender maconha passou a ser a
sua principal atividade. Aos poucos, ganhou a confiança de um traficante, cuja
casa começou a frequentar. O sujeito vendia de tudo: estimulantes, cocaína, LSD,
maconha, lança-perfume. À porta do colégio, por volta de 1978, enquanto
“passava” a maconha, Peri conheceu alguns estudantes menos apáticos. Com eles
discutia política e socialismo.
Noite de tormenta
Ficou em silêncio e mostrou o revólver encostado em seus rins.
O companheiro arregalou os olhos e,
tremendo, disse: - Ih, cara! Já dançou?
Sua vida estava mudando. Mudaria mais
ainda a partir daquela noite – aquela fatídica noite em que resolvera não ir à
aula e estava ali, diante da porta do prédio onde morava, ele e “Parafina”, um de
seus amigos, quando se aproximou um velho conhecido, intermediário, entre ele e
os viciados que compravam drogas. O intermediário vinha acompanhado pelo
viciado, o que não era usual, mas, despreocupado, Peri não deu importância a
isso. Foi seu erro.
O intermediário chamou-o a um canto: o
companheiro dele queria uma “quina”: cinco baseados. Peri disse que deviam
subir e esperá-lo fora do elevador, no quinto andar. Ele morava no oitavo e ia
lá dentro buscar a maconha.
Quando desceu, os dois já estavam à
espera. Acompanhado do fiel e inocente “Parafina”, parou, meteu a mão no bolso
e estendeu a maconha. O comprador abriu a “trouxa”, olhou o fumo, ergueu os olhos
e perguntou, sem usar a gíria dos habituados: - Então isso é quinhentos cruzeiros?
Peri gelou. O sujeito não reclamara, como
faziam todos, da pouca quantidade de fumo. Não perguntou se o fumo estava
malhado, e, em vez de referir-se à quantidade com a expressão “quina”, usara
“quinhentos cruzeiros”. Suspirou fundo, entre temeroso e resignado, e pensou:
dancei.
Tentou afastar-se andando para trás. O
sujeito, pouco mais de 20 anos, cabelos longos, barba crescida, roupas jovens,
olhou-o fixamente nos olhos e gritou: - Pode parar aí!
Peri ficou em silêncio e mostrou o
revólver encostado em seus rins.
O companheiro arregalou os olhos e,
tremendo,
disse: - Ih, cara! Já dançou?
Tinha um revólver na mão direita.
Peri entrou no elevador, desorientado,
o sujeito atrás, segurando-o pelo braço, o cano do revólver encostado em seus
rins. “Parafina” acompanhou-o como um zumbi: estava drogado, meio zonzo e
trêmulo. O intermediário também os seguiu, os olhos no chão, cheio de vergonha.
Era, a partir de agora, um “dedo-duro”. E estava fora do negócio.
O elevador parou no terceiro andar,
descendo, e entrou um dos vizinhos de Peri também viciado. Olhou o companheiro
e, aliviado, revelou: - Ô Peri, toma cuidado. Desse “limpo” que lá fora ta cheio
de “cana.”
Peri ficou em silêncio e mostrou o
revólver encostado em seus rins. O companheiro arregalou os olhos e, tremendo,
disse: - Ih, cara! Já dançou?
Lá fora, aglomerava-se uma pequena
multidão. Havia muitos carros da polícia. Um dos policiais segurou Peri e
“Parafina” pelo pescoço, Peri com a mão direita, o frágil “Parafina” com a
esquerda, quase os erguendo no ar – e, com voz alta, irônica e vitoriosa,
falou: - Podem ver: são dois traficantes, escória da sociedade. Mostra aí para
o povo – ordenou ele ao outro policial – mostra aí o que eles tinham no bolso.
O outro espalhou a maconha na calçada,
sobre um jornal. Pouco mais de 50 gramas, uma quantidade desprezível. O povo
olhava, espantado. Então aquilo era a famosa maconha. Os policiais riam.
Os dois foram empurrados para dentro do
camburão. Cada um levou um tapa no rosto. No caminho até a casa de detenção,
popularmente conhecida como “Carandiru”, no bairro homônimo de São Paulo, para
onde são conduzidos todos os detentos da região metropolitana de São Paulo, e
onde – por falta de lugar nas penitenciárias – centenas de presos perigosos se
misturam com outros, que aguardam julgamento ou que são presos para simples
averiguações, só por uma noite, um dos policiais olhou para Peri e,
arreganhando os dentes, rosnou: - Você já ouviu falar no Esquadrão da Morte?
Nós fazemos parte dele. Já pensou se você morresse no caminho?
Terror e tortura
Sua descida ao porão deixa marcas de
cortes profundos,
como ferro em brasa.
No porão, o policial bate com a ponta
do cassetete na boca do preso e o sangue esguichou. Aí o outro policial
arreganhou a boca do homem e enfiou a mangueira de água com alta pressão pela
goela dele adentro. O homem – que estava imobilizado no “pau-de-arara” e só
podia mover a cabeça – vomitou água e sangue e Peri fechou os olhos para não
ver. O policial deu-lhe um cutucão na barriga e disse: - Abra os olhos, seu
cachorro! Isso aí é o que vai acontecer com você daqui a pouco.
Peri estava num ponto da Avenida Cruzeiro
do Sul, no distrito de Santana, zona norte de São Paulo. Ao seu lado a Casa de
Detenção de São Paulo, palco principal de inúmeras crises do sistema
penitenciário paulista durante mais de vinte anos, desativada e implodida em
2002, para dar lugar ao Parque da Juventude.
O complexo do “Carandiru” já foi
desativado inúmeras vezes por causa das denúncias de jornalistas que ali sempre
buscaram assunto para histórias trágicas e sensacionais. A penitenciária era
sempre reaberta, depois, porque a polícia não tem mais onde guardar seus presos
e ali os mistura, naqueles escuros calabouços que os antigos jornalistas batizaram
com nomes como “sucursal do inferno” e outros parecidos.
Para quem passava na avenida era,
portanto, um ponto de referência para quem sai e para quem chega a São Paulo. Para
quem mora ali perto, o “Carandiru” já faz parte da paisagem. Para todos,
entretanto, o que acontece lá dentro é um mistério. Mas ninguém jamais ouviu um
preso gritando de dor: nenhum som atravessa as sólidas paredes daquela sombria fortaleza.
Para ouvir gritos é preciso estar lá dentro.
Não nas salas dos delegados, nos corredores, nos saguões. Não. É preciso antes
atravessar o pátio, cruzando uma enorme porta de ferro cheia de grades. E
depois outra porta de aço, larga como se devesse resistir a um ataque por meio
de bombas pesadas. Transpostos estes dois obstáculos, começa então o inferno.
Ali dentro o ser humano deixa de ser humano para igualar-se, segundo escreveu
um velho jornalista, ao mais pérfido e desprezível animal selvagem. Naqueles
calabouços ninguém tem cheiro de gente.
Ele vomitava sangue, água e sangue
saindo, e eles berrando:
“Vai falar ou não vai?” Como podia falar, se estava com a mangueira
dentro da boca?
Naquela noite terrível, Peri e
“Parafina” foram de repente jogados numa cela cheia de prisioneiros. Quando se
viram ali trancafiados, suspiraram aliviados. No caminho, os policiais
reafirmaram a ameaça de matá-los e jogar os corpos no rio Tietê. Como iam na
direção ao bairro do “Carandiru” é passagem obrigatória para quem vai do centro
de São Paulo à zona norte da cidade. Peri não recorda a localização exata: se
era na Avenida Cruzeiro do Sul, 2.487, no distrito de Santana, zona norte. - Peri
e “Parafina” começaram a tremer de medo. Eles poderiam, realmente, matá-los.
O alívio que Peri e “Parafina” sentiam desapareceu
quando eles olharam em volta. Na cela havia dois negros aparentemente mortos. A
princípio com timidez, depois com interesse, Peri aproximou-se dos dois corpos.
Não, não estavam mortos. Eles respiravam, e um deles, molhado – uma mistura de água,
gordura e sangue -, tinha os lábios inchados, os olhos roxos e marcas de
equimoses por quase todo o corpo. E delirava: “Quando eu sair daqui – dizia
ele, no seu delírio – eu mato um por um. Eu mato. Eu vou matar um por um...”
“Parafina” começou a chorar e Peri,
desorientado, voltou às grades. Atrás deles, uma voz disse: “O rapazinho parece
moça.” Um carcereiro passou diante da cela, olhou para dentro, palitou os
dentes e, rindo, avisou: “O delegado mandou dizer que vai colocar todo mundo no
“pau.” Os presos respondiam com palavrões, gritando e chutando as grades.
Minutos depois entraram dois policiais gordos. Enquanto dois outros ficavam do
lado de fora, com as mãos perto das armas, os outros dois arrastaram para fora
o crioulo que delirava.
- Já descansou bastante – disse um
deles. – Vamos voltar para o “pau.”
- Quando eu sair daqui – gemeu o
crioulo revirando os olhos – eu vou matar vocês dois. Eu vou matar um por um...
Ainda era noite quando os mesmos
policiais trouxeram o homem de volta. Estava inconsciente. E foram estes mesmos
policiais que seguraram Peri e “Parafina” pelos braços e avisaram: - Agora é a
vez de vocês.
“Parafina” desapareceu por um dos
corredores, chorando como um menino e pedindo para não baterem nele. Peri foi
empurrado até uma sala cheia de instrumentos estranhos, mas ninguém tocou seu corpo.
Ordenaram que se sentasse e ele alí ficou, num banquinho, esperando. De vez em
quando, os policiais entravam com um ou dois presos. Eram dependurados no
“pau-de-arara”, espancados com cassetetes, jogados no chão e pisoteados. Um
sujeito aproximava-se com uma mangueira de água com alta pressão e molhava-os
violentamente com os jatos.
Peri: - Isso eu jamais vou esquecer. Parecia que estavam
batendo por gosto, por puro prazer. Às vezes, eles nem perguntavam nada. Uma
hora trouxeram o “Parafina”, que estava com a boca sangrando, e mandaram que
ele se sentasse ao meu lado. A gente ficava ali assistindo àquilo. Era como se
fosse um filme. Se a gente fechasse os olhos, eles mandavam abrir e nos davam
socos. Eu vi sangue no chão, na parede, por tudo quanto é lado. Gente com
sangue saindo pelo olho, pela boca, pela orelha. Sangue por tudo quanto é
lugar. Botaram um preso no “pau-de-arara” e ele ficou lá dependurado, amarraram
com corrente, e ele só podia mexer com a cabeça, o resto ficava imobilizado. E
aí eles batiam, chutavam, jogavam água. Ele vomitava sangue, água e sangue saindo,
e eles berrando: “Vai falar ou não vai?” Como podia falar, se estava com a
mangueira dentro da boca? Os presos entravam e saíam. Nuns, eles batiam só com
palmatória, até a mão ou os pés incharem. Eu nunca tinha visto nada igual.
Depois dessa sessão de violência, Peri
foi conduzido à sala da delegada – uma mulher corpulenta e ainda jovem – e ali
denunciou, aterrorizado, todos os traficantes com os quais tinha tido contato. Endereços,
nomes, situações: tudo ele relatava mecanicamente, como se nada lhe dissesse
mais respeito. Um advogado desconhecido o aguardava na mesma sala e acompanhou
todo o depoimento. A delegada ria ironicamente, dizendo: - Você teve sorte. Vai
sair logo, porque seus parentes parecem que têm influência. Se ficasse aqui, ia
sofrer um pouco. Tem preso aqui que não vê mulher faz três anos.
Tinha vontade de gritar, perguntar a
ela se sabia o que estava acontecendo lá dentro – mas o advogado o cutucava e
dizia: “Não fale nada além do que perguntarem”.
“Espero que a partir de agora você
tenha mais consciência perante a sociedade e Deus.” Exatamente isto, que não
vou esquecer nunca.
E então eu pensei: como esta mulher pode
falar em Deus
depois de todo aquele horror?
- E então, de repente, quando já
estávamos saindo – lembra Peri rangendo os dentes com ódio -, ela pôs aquela
mão gorda no meu ombro e disse: “Espero que a partir de agora você tenha mais
consciência perante a sociedade e Deus.” Exatamente isto, que não vou esquecer
nunca. E então eu pensei: como esta mulher pode falar em Deus depois de todo
aquele horror?
Lá fora, no saguão do “Carandiru”, Peri
pôde ver o pai e a mãe – absurdamente lado a lado, eles que não se encontravam
nunca -, os irmãos e alguns parentes. Faziam perguntas que ele não respondia,
os olhos ainda arregalados.
“Eu não passava de um prisioneiro
condenado a dois anos, fora da cadeia, mas preso da minha própria casa e da
minha própria cabeça.”
- Saí daquele lugar completamente
abobado e mudo. Fiquei uns 20 dias em casa, sem sair até no corredor do prédio.
Parei de estudar. Tinha medo de ir à aula, com medo de ser preso no caminho.
Não fui mais trabalhar. Soube depois que os padres do colégio também não queriam
mais saber de mim e já preparavam minha expulsão, para não contaminar o resto
dos alunos. Então não tinha mesmo jeito: eu estava mesmo condenado. Peguei toda
a maconha que tinha debaixo do colchão da cama e pus fogo. E fiquei ali dentro
da casa, igual um zumbi, até o dia do julgamento. Fui condenado a dois anos,
com direito a sursis. O Juiz me dava conselhos e eu lembrava os presos
apanhando. Naquela dia, fiquei na janela do apartamento olhando para baixo,
vendo as pessoas igual formigas andando lá embaixo, e pensei que se eu pulasse
dali me esborrachava na calçada e acabava com aquele desespero. Não me lembrava
mais do Nietzsche, de coisa alguma, aquele negócio de enfrentar a realidade e
viver a vida, ainda que sem finalidade. Mas eu não tive coragem de pular e
fiquei só olhando as pessoas andando lá embaixo, vivendo suas vidas, enquanto
eu não passava de um prisioneiro condenado a dois anos, fora da cadeia mais
preso da minha própria casa e da minha própria cabeça. Eu estava traumatizado e
a ponto de enlouquecer.
Com medo de sair à rua, sem escola, sem
trabalho, no fundo de uma crise depressiva sem tamanho – a primeira grande
crise de sua vida – Peri decidiu mudar-se para um lugar distante. E naquele
mesmo ano de 1980 desembarcou no Terminal Rodoviário José Lemes Soares, de Presidente
Prudente, decidido reconstruir sua vida. No início, andou de emprego em
emprego, insatisfeito, incapaz de concentrar-se em qualquer atividade. Era
sempre demitido – ou porque faltava muito ao trabalho ou porque não cumpria adequadamente
as funções exigidas dele.
Morando num pensionato barato, num
minúsculo quarto cheio de beliches nos quais se amontoavam oito e até mais pessoas
estranhas, percebia que não aia ser fácil o seu novo e solitário aprendizado. Conheceu
uma telefonista que, pouco a pouco, o ajudava a “sair do buraco” e até lhe dava
dinheiro. Com ela, integrou-se a um grupo de teatro amador de doutrinação evangélica.
“Aquelas pessoas ali orando. Achei um absurdo
pensar em Deus sem pensar no resto do mundo.”
“Mas, de repente, comecei a achar que
aquilo tudo era uma ilusão. Aquelas pessoas ali orando. Achei um absurdo pensar
em Deus sem pensar no resto do mundo. Uma mulher deu sua casa para a seita era milionária,
mas todos nós éramos pobres. Pobres e individualistas. Aí, eu já estava lendo
Voltaire e suas idéias contra o fanatismo religioso.” – declara Peri.
Empregado
como escriturário num grande banco, aparentemente liberto de seu passado e dos traumas
da prisão, Peri percebeu que ainda era capaz de rir. Era, contudo, um ser solitário:
“engrenado no sistema”, percebia as diferenças entre ele e os outros
funcionários do banco. Ele falava de William Shakespeare, Edgar Allan Poe,
Voltaire e Nietzsche. Os companheiros de trabalho, espantados, falavam do
Corinthians, do Palmeiras, do São Paulo, do Santos ou das mulheres nuas nas
capas de revistas masculinas. Pareciam falsos, caricaturas de seres humanos.
Nos bares, diziam coisas absurdas: - Gosto de poesia – dizia um deles – Mas
nunca li.
-
Adoro teatro – informava outro – Mas nunca fui.
Deslocado
neste ambiente, nervoso, intranqüilo quanto à possibilidade de ser feliz, Peri
não conseguiu formar um círculo de amizades – e, já sem o pânico que se seguira
à sua condenação, voltou de novo às drogas. Não mais para vendê-las, mas para
seu próprio uso. Uma forma, quem sabe, de fugir da solidão e da angústia.
Tinha
sido demitido da agência bancária, antes de completar três meses, por ter
emitido um cheque sem fundos. Como não é mais criminoso primário – só há poucos
meses acabou de cumprir em liberdade condicional sua primeira pena de dois anos,
por tráfico de entorpecentes -, ele dificilmente escapará da prisão se for
preso novamente em flagrante. Neste caso, se torna difícil, quase impossível,
para ele, iniciar mais uma vez uma vida normal. E reacender, como no seu poema,
“a chama apagada”. Mas eu espero que alguém possa fazer alguma coisa por ele.
Problema continua sem solução
Daqui a pouco tempo, por falta de plano envolvendo comerciantes
e moradores de Presidente Prudente, será adotada pela polícia militar a operação
de dispersão dos usuários de Crack, como ocorre na praça Princesa Isabel, no bairro
Bom Retiro, entre outros pontos, em São Paulo. O que formará as chamadas “procissões
do Crack”, ocasionadas pela dispersão dos indivíduos, uma ação que desvia o
escopo da necessidade de tratamento humanitário para os usuários. Se forem
adotadas as intervenções acentuarão os problemas na segurança e na dinâmica,
dos comerciantes e moradores, tanto do centro comercial como a Vila São Jorge.
E, consequentemente, o problema social se alastrará para outros bairros da cidade.
Na opinião de Aluizio Marino, pesquisador do Labcidade
da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, “a política atual utiliza
a dispersão das pessoas.” Faz-se a vigilância em torno de praças, não abarcando
todas as outras mini áreas de foco existentes na cidade.” Conforme explica
Marino, prender os traficantes está longe de resolver a questão, porque “os
usuários são os próprios traficantes que vendem para consumir. A lógica da
Guerra às Drogas acaba sendo, na verdade, uma guerra aos pobres e as pessoas
indesejadas.”
Além dos usuários praticarem a constante intimidação
e furtos aos transeuntes e comerciantes, os moradores do entorno desses focos (terminal
urbano, rodoviário e na via férrea na Rua Mendes de Morais, Vila Marina, na
zona leste) não conseguem usufruir de noites tranquilas, a exemplo de
reunirem-se e conversarem nas áreas de suas casas, e os proprietários de lojas
sentem que o governo e os representantes do povo precisam criar ações que
evitem os usuários pedindo dinheiro próximos as portas de seus
estabelecimentos. De modo uniforme, reivindicam a criação de políticas públicas
ousadas e complementares que vão atravessar as questões da habitação, da saúde,
da oportunidade de trabalho e da cultura de modo conjunto com diversas camadas da
sociedade e a longo prazo.
O pesquisador da FAU, enfatiza: “a gente pode-se perguntar
muitas vezes por que da Cracolândia em São Paulo, entre outras cidades do
Brasil, permanecer há anos? Parece até que existem outros interesses por trás
disso.”
R. S. Jr.
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